Já se repetiu o suficiente! A era do diretor acabou. Acabou-se a era do demiurgo
obcecado, do tirano lunático. Diretor-deus, atores robôs; tudo isso terminou:
criação coletiva, a era do cenógrafo…
Sim, mas… quando nós vamos ao teatro, e
quando gostamos, é evidente que é a obra de um homem que fomos ver. Um homem de
carne e osso. Nós vamos, excitados, ver o último trabalho dos mais célebres (não
esperem de mim uma premiação), daqueles cuja maneira de trabalhar nós conhecemos
— ou dos iniciantes na carreira, os quais procuram a sua maneira. Cada um deles,
único.
E é bem verdade, porém, que o papel do cenógrafo nunca foi tão grande,
pois, mais do que nunca, uma criação teatral é a criação de um espaço, de um
espaço único, exclusivo para tal obra, único neste momento preciso do tempo em
que vivemos.
Este espaço, é o cenógrafo quem o cria, o constrói, mas, é o
diretor que o escolhe. Que o escolhe a favor e contra o sentimento de seu tempo.
Mais do que nunca, talvez nesta era de imagens, o diretor seja o homem que
julga. A obra onde Kant[3] expôs sua teoria sobre a arte tem por título A Crítica da
faculdade de julgar. A esfera da arte é o lugar deste julgamento particular ao
qual se dá o nome de julgamento estético.
O julgamento, a escolha. A escolha,
em primeiro lugar: a escolha da obra em função de quais critérios? Eles são tão
misteriosamente pessoais quanto contextuais. Escolha de práticos (o cenógrafo
entre todos, escolha capital); escolha de corpos e escolha de vozes. E o que
seria uma encenação senão fosse esta perpétua luta entre a necessidade interior
do projeto e as determinações materiais? (Este ator? Ocupado, muito caro… Esta
maquinaria, este cenário? Neste lugar? Impossível.) E é precisamente esta luta
que define, com todas as suas probabilidades, o trabalho e a posição de todo
artista: luta do projeto a favor e contra as limitações do real. O diretor,
portanto é um artista no sentido amplo do termo. Mas menos senhor de sua matéria
do que, por exemplo, o maestro de uma orquestra. Artista paradoxal: ele possui a
escolha, todas as escolhas, a escolha de um texto ou de uma ausência do mesmo;
escolha de uma estética (ou mais modestamente de um estilo); escolha dos
práticos e dos “intérpretes”, como se diz. Mas ele não possui a tarefa prática
do trabalho: não é ele que faz as maquetes, não é ele que atua (e se ele também
representa é sob um outro registro). Ele decide, mas não faz, e como diz
Strehler[4], vive a mais intensa frustração: quando o teatro começa,
concretamente, fisicamente, ele termina, faz as malas.
Ele não faz, mas
julga. Julga sem parar. Julga aquilo que o cenógrafo lhe propõe; julga o
trabalho do iluminador; julga na proporção do que lhe mostra o ator; o mesmo
ator que ele já escolheu. Como ele será capaz de julgar, se não for em função de
um projeto e de uma estética, que são exatamente os seus, porém sem cessar
influenciados pelo contato com um real exterior, não somente com esta “matéria”
que são os outros artistas, mas com outros projetos, de produções estéticas já
elaboradas, que vêm dos outros e estão, em relação a ele, distantes. Destas
produções, destes conjuntos dispersos, ele é obrigado a fazer um
texto.
Então, sem cessar, ele seleciona. Julgar é selecionar, separar a boa
semente. Ele pára repentinamente e grita: — “Sim, é isso aí, continue! Sim, fixa
esta entonação, este gesto.” Ou: — “Não, pára, você está no caminho errado!” —
“Se você não me mostrar nada, diz Vitez[5] aos seus atores, eu não posso fazer nada.” Fazer, para o
diretor, não é fazer sozinho, é fazer em companhia de.
A tarefa do diretor
hoje, mais do que nunca, é fazer contra: contra a percepção imposta; contra o
peso incrível dos hábitos visuais, do bombardeamento midiático; contra o choque
das imagens previsíveis. Talvez também contra a tentação de ir no sentido destas
imagens: o teatro não as alcançará nunca, elas estarão sempre à sua frente e
farão parecer, irremediavelmente, fora de moda toda encenação que tiver por
objetivo rivalizar-se com elas.
É um privilégio para o encenador de hoje
dispor de artistas independentes, imaginativos, indóceis, violentos. A tarefa do
diretor no presente? Não é mais fácil do que no passado, tão urgente, dramática.
Talvez (e talvez seja o meu fantasma pessoal, mas não tenho certeza) seja a de
tocar em algum lugar a sensibilidade fugaz, intimidada e pronta a se revoltar.
Dar o poder, pela síntese dos meios e dos signos, e pela economia destes meios;
escutar a fala humana no que, pelas palavras e pela voz, ela diz de mais
importante para nossa vida — ou para nossa sobrevivência.
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[1] Artigo publicado na revista: L’Art du Théâtre: Actes Sud / Théâtre National de Chaillot, hiver 1986 / printemps 1987, n° 6, pp. 73-74. Tradução e notas de Walter Lima Torres.
[2] Anne Ubersfeld é ex-aluna da Ecole Normale Supérieur, pesquisadora e professora emérita do Instituto de Estudos Teatrais de Paris III, Sorbonne Nouvelle. Autora de inúmeros livros tais quais: Lire le théâtre; L’Ecole du spectateur (Lire le théâtre 2); Le drame romantique; entre outros títulos.
[3] Emmanuel Kant (1724-1804) filósofo alemão.
[4] Giorgio Strehler (1921-1997) ator, diretor teatral italiano. Em 1947 Strehler fundou, com Paolo Grassi, o Piccolo Teatro di Milano.
[5] Antoine Vitez (1930-1990) ator, diretor teatral francês. Durante os anos 1980 dirige o Teatro de Chaillot nos anos 1990 a Comédie Française.
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