As turmas de estudantes de teatro muitas vezes são numerosas, e
integradas, majoritariamente, por jovens atrizes. Ao menos esta tem
sido uma presença observada nas obras cênicas trazidas à Blumenau
para o FITUB pelos grupos de formandos do antigo IUNA, atual
Universidad Nacional de las Artes. - Todo Hecho; El Cadaver
de um recuerdo...; Arenales; Laura; Epopeya Beat,
entre outros títulos. Nestes casos, o autor-diretor da encenação
ou o autor-professor responsável pela montagem, (a denominação
pouco importa), precisa contemplar um coletivo de jovens atores em
formação ao mesmo tempo em que propicia o exercício do trabalho
teatral aos alunos, as vezes sua última montagem acadêmica e a
primeira da vida profissional.
Talvez esta circunstância de ter que fazer trabalhar toda a turma
sem personagens fixos, aliada ao rigor de fazer participar a todos e
todas, tenha contribuído para dar liberdade e ao mesmo tempo
condicionar, cada vez mais, a criação cênica de certas produções
da UNA na direção de uma forma teatral que desperta sempre grande
interesse. É claro que a encenação também recebe seu contorno
contemporâneo graças aos ares de pós-dramaticidade que impregnam a
linguagem teatral dos dias que correm, não deixando assim de
consolidar uma forma narrativa específica, a forma coral.
Tendo o coro teatral se transformado para dar lugar ao protagonismo
de entes ficcionais individualizados, esta estrutura narrativa foi
sendo reduzida até se fixar na comparsaria de grandes cenas de balé,
ópera e até mesmo do teatro dramático, em certos casos.
Essa forma coral nos lembra os esforços criativos na passagem do
balé romântico ou clássico para a dança moderna e contemporânea.
Isto é, uma coreografia que dissolvia seus bailarinos protagonistas
fazendo com que o grupo atuasse agora de forma integrada, com
alternâncias de papéis entre solos, duos, trios, quartetos, graças
à diversas combinações temáticas ou corporais, apresentando uma
obra coletiva coesa, cujo protagonismo é deslocado para o conjunto
de relações possíveis entre os bailarinos que trabalham,
coletivamente, integrados. No caso da dança, conforme estou me
referindo ao seu aspecto coral, exemplos podem ser observados tanto
desde coreografias de Martha Graham como de Pina Bausch. Assim a
unidade coral sempre foi um elemento importante para dança bem como
para o teatro.
No caso do teatro contemporâneo, que ainda nos oferece obras
narrativas, este aspecto grupal e coletivo, esta forma coral, nos
leva para uma experiência narrativa de contornos rapsódicos, da
qual o espetáculo em questão da UNA reivindica sua origem. O
próprio espetáculo anuncia a sua dose de "variações,
especulações, e outras barbaridades sobre Hamlet".
Para os gregos, o rapsodo,
diferente do aedo, era
aquele que declamava. Ele era uma espécie de artista popular ou
cantor que de cidade em cidade recitava poemas épicos. No Íon
de Platão, o personagem Íon dialogando com Sócrates não se
apresenta somente como um mero declamador das rapsódias de Homero,
mas também como seu comentarista Vê-se aí que o comportamento
criativo possui matrizes que nos atravessam e que são recicladas a
todo instante. No caso da montagem da UNA o narrador é plural além
de épico, constituído pelo grupo de corpos e vozes que cantam,
falam, declamam, discutem, berram e se desesperam... "E por
quem? Por Hécuba?"
E é assim, na direção da
construção de um grande quadro-musical-comentário geral sobre o
ser, o nada, sua loucura e a bizarrice do comportamento humano, todos
temas decalcados do conteúdo de Hamlet
e da obra shakespeareana, que a encenação de Matías Feldman opera
diante do espectador dentro de uma dinâmica musical. Os primeiros
espectadores e colaboradores deste comentário geral parecem ser os
próprios jovens atores que encontram na encenação, deste projeto
de graduação em atuação, um espaço de exercício para sua
própria expressão como ator-rapsodo de certos
fragmentos-dilemas-hamletianos. A conclusão das formações dos
jovens atores se dá assim sob o signo de um dos maiores mitos da
dramaturgia ocidental, sem necessariamente se dar ao trabalho de nos
contá-la, pois já a conhecemos.
A dramaturgia e a direção de
Matías Feldman se atritam com a fábula shakespeareana, mediadas por
uma composição cenico-musical, na tentativa de provocar primeiro a
imaginação dos jovens atores e depois as nossas consciências de
espectadores adormecidos sobre os valores e temas da
contemporaneidade: arte desumanizada, autoritarismo, conflito
geracional, de classes e de gêneros, diversidade de orientação
sexual, imaginação, loucura, violência, e tantos outros temas que
por sua vez tornam a encenação um pouco saturada e dessa forma
longa. Em todo caso, Feldman não é um iniciante em relação à
obra mítica de Shakespeare. Juntamente com Santiago Gobernori criou
uma versão "playera", com o espetáculo Hamlet,
la obra.
(http://www.losinrocks.com/escenas/hamlet-la-obra-de-santiago-gobernori-y-matias-feldman#.VabF3SQZa00).
Portanto, o espetáculo de formatura da UNA parece se colocar na
esteira de preocupações que já vêem ocupando o jovem encenador.
Um dos motes para exibição de
tantas "barbaridades sobre Hamlet" na versão apresentada
no FITUB tem sua porta de entrada franqueada pelo próprio labirinto
da "cabeça" do desafortunado príncipe. Diga-se de
passagem que esse recurso é similar, digo somente em parte, àquele
já explorado por Laurence Olivier quando realizou em 1948 o filme,
no qual ele próprio interpretava o papel título
(https://www.youtube.com/watch?v=5ks-NbCHUns).
No filme de Olivier, o cinéfilo observa num certo momento, pelo
movimento da câmera, os labirintos do castelo (metáfora da própria
mente do personagem), que são percorridos, através da escada, em
movimento vertical (num gesto de ascensão à procura da consciência
sobre os fatos). A câmera nos leva sobre as ameias do castelo, com
vista para o mar, para em seguida mergulhar "penetrando" na
mente, na consciência/inconsciência de Hamlet, a perscruta-la...
para só então neste instante, Olivier debitar o famoso solilóquio
"ser ou não ser"... envolto numa atitude entre o sonho, o
devaneio e a vigília... Não fosse o mar uma das mais altas
expressões simbólicas do inconsciente...
No caso da encenação de Matías Feldeman, no tocante a esse
mergulho na mente de Hamlet, ele é, ao contrário do filme de
Olivier, promovido no sentido oposto. Isto é, ele se dá na direção
ao mundo inferior, para baixo, desde a toca do Coelho de Alice.
Instaura-se um movimento contrário ao ascencional... um mergulho na
inconsciência (desejo reprimido de retorno ao útero?), na direção
da "pequena morte" orgástica, orgiástica, ao sabor da
descida infernal, reveladora das barbaridades que via Hamlet, ainda
nos assombram.
Não é por acaso que a entrada da toca se faz com papel, folhas e
folhas de papel... "Pode-se perguntar o que meu príncipe está
lendo", interroga-o Polonius. Ao que o órfão mais enigmático
da dramaturgia ocidental responde, "palavras, palavras,
palavras".... É graças às palavras ditas e não ditas, por
meio desse monte de papéis, partes e fragmentos que mergulhamos nos
questionamentos contemporâneos mediados pelo duplo de uma Rainha
Gertrud de Copas cuja expressão castradora faria inveja ao Sr.
Freud. Assim, a "entrada" na mente do príncipe vingativo
se dá por meio de palavras e palavras... que não param de ser
enunciadas como um tempestade pelo conjunto de atores.
Como bem assinala Alejandro Cruz, a
platéia se defronta com quinze jovens que se "se transformam em
atletas da cena desencadeando os mais inauditos sentidos" para o
pacífico espectador.
(http://www.pressreader.com/argentina/la-nacion/20150706/282694750824888/TextView).
Eu diria que os atores, inspirados por Matías Feldman, com seu
entusiasmo juvenil, e sua capacidade de exaltação rapsódica do
espírito hamletiano, provocam no espectador uma estranha sensação
invasiva. Esta invasão se dá desde o início da exibição da obra,
desde a discussão inaugural, discussão sobre o "ser ou não
ser" da própria montagem. Trata-se desde aí, de uma espécie
de construção de um estado de receptividade em segundo grau no
espectador. Um estado de prontidão semelhante ao da assembléia
reunida por Hamlet para assistir ao "Assassinato de Gonzaga".
Só que diferente de Claudius, não interrompemos a ação... não
saímos da sala nem gritamos "luz, luz, luz!" Somos
burgueses sem convicção.... classe média conivente,
confortavelmente, instalada em poltronas a delirar, cinicamente,
envolvida por suas próprias culpas, que não são tão nossas...
dirão alguns...
Diferente do herdeiro do trono da
Dinamarca, estamos acomodados e quando agimos é com indiferença...
assim, diferente de Hamlet, somos incapazes de agir, paralisados pela
hipótese de um pensamento que venha a transformar um estado de
coisas caótico, que ao mesmo tempo foge ao nosso controle, tal como
o inexorável da trajetória da fábula de Shakespeare que enreda o
príncipe ao seu triste destino.