Capítulo II
Niccola Sabbattini de Pesaro é um arquiteto e
construtor de máquinas nascido em Pouilles, região fecunda em
técnicos deste gênero. Ele teria sido mais um entre tantos outros
práticos se não tivesse publicado em 1638 um tratado de
ilusionismo: Pratica di fabricar scene e
machine ne’ teatri 2.
Ele não foi o primeiro a escrever um livro deste gênero: la
Pratica della prospettiva (1579) o
antecedeu, sem comentar os ensaios de Serlio, de Vignola e de todos
os outros que o precederam ou o seguiram. Entretanto, este tratado é
o mais significativo. Traduzido para o francês e outras línguas,
ele será o livro de cabeceira de todos os construtores de
espetáculos. Ele definiu uma técnica de ilusionismo e como se dizia
então “visionária”.
Sabbattini é importante, sobretudo por ter consolidado um tipo de
cena e de construção cênica; por ter permitido uma dicotomia e uma
estratificação na experiência imaginária; por ter, de fato,
intensificado as capacidades do homem para construir materialmente o
seu sonho.
Antes da reforma de Sabbattini, pode-se dizer que
existe na Europa, nas sociedades cujas estruturas tendem à aparição
do absolutismo esclarecido (ou seja, por volta do final do século
XVI), dois grandes sistemas dramáticos que se manifestam por meio de
duas noções diferentes sobre o campo
de expressão: a concepção
greco-latina que sobrevive dentro dos grupos restritos do clero e a
concepção do teatro em afresco dos “mistérios”.
A primeira supõe um muro axial, diante do qual um
número limitado de personagens vem comentar os acontecimentos. É o
princípio das peças de Sêneca e o princípio das peças
representadas nas universidades, ou diante dos grupos de eruditos: as
pessoas que integram estes grupos não pretendem a espetacularização
concreta, mas a sobrevivência; para obter este resultado, elas
contam com o discurso entendido aqui como monólogo. A tipologia dos
personagens implicados nesta forma de campo dramático é
evidentemente muito limitada: é quase sempre depois
do acontecimento ou antes
do acontecimento que se situa o drama, a expressão pela linguagem da
indecisão ou do sofrimento que se apresenta sempre em função de
uma mitologia antiga deslocada de seu contexto.
Num certo sentido, estas manifestações não são
mais do que cerimônias “mágicas”, por meio das quais os seletos
grupos de clérigos tentam não realizar as condições de existência
concreta, mas dando a mão à Antiguidade, estabelecer a sua
continuidade. Os mitos que eles exploram são literários, não
refletindo nenhuma realidade dentro da mentalidade coletiva presente.
Contentam-se com um recitativo bem escrito sobre uma infelicidade
sobrevinda provavelmente há vários milênios da época em que os
autores exibem esta mesma situação. O muro diante do qual se
sucedem os monólogos é antes de tudo simbólico: poderíamos dizer
que ele separa o teatro da vida social. No lugar do antigo muro, que
era como um plano unidimensional de uma frisa, de onde se destacavam
fortemente os personagens da tragédia grega, está um esconderijo
que permite à sociedade fechada dos clérigos acreditar que vive
ainda no século VI a.C. Pode-se afirmar que os dramaturgos franceses
do século XVI adotam esta fórmula na exata medida em que eles se
opõem à forma tradicional e verdadeiramente coletiva –
sociologicamente falando – do lugar dramático: a cena do
mistério3.
A cena do mistério é de uma natureza oposta: ao invés de oferecer
um lugar dramático abstrato, ela apresenta simultaneamente uma
seqüência de quadros vivos. E o tema real da representação é a
multidão, difusa, apaixonada, desorganizada que vem à cidade para
participar de festejos. Com efeito, nós estamos no âmbito da festa
e do cerimonial: o mistério não tende necessariamente na direção
da “peça” acabada, ele está sempre a meio caminho entre: a
manifestação difusa, metade espetacular, que reúne as massas já
agrupadas nas cidades por ocasião de um evento religioso; e os
“autos-sacramentais”, obras completas, totais, acabadas e
fortemente individualizadas. Aliás, os animadores-autores que nós
conhecemos (Arnaud Daniel, Anselme Faidet, Béranger de Parasol),
como os organizadores dos espetáculos de farsas, não procuram mais
do que apresentar uma “gestualidade”, para tornar espetacular o
acontecimento. Porque o acontecimento, ao contrário do que se passa
com a outra fórmula dramática, domina aqui o senso literário da
expressão: o gesto leva a melhor sobre a palavra. É natural que a
ênfase desta concepção se concentre sobre a vida de um santo ou de
um homem “interessante”: a existência é aqui “exposta” por
inteira.
Entretanto, a expressão mais perfeita desta
fórmula encontra-se no teatro elisabetano. Sem dúvida, os
dramaturgos, que acompanham Ben Jonson e Shakespeare, são eles
também letrados, mas ao contrário dos autores franceses desta época
eles sabem tirar partido do campo dramático com construção
lateral, implicando a simultaneidade de todos os instantes do tempo.
A propósito do campo dramático shakespeariano, Jouvet falava de um
“estereoscópio permitindo que se veja a multiplicidade de
perspectivas”, sem se valorizar nenhuma: no teatro do Globe,
os acontecimentos são realmente apresentados ao espectador coletivo
pela ação direta. A construção cênica lembra neste sentido a
arte dos antigos afrescos mais do que as frisas gregas: uma
superposição de galerias laterais e um palco onde os grupos de
personagens se mantêm em cena permite uma representação de todos
os momentos do drama. Dentro das perspectivas de uma tal
estereoscopia (que se impõe numa arquitetura porque os dramaturgos a
haviam experimentado previamente na imaginação coletiva), o real da
expressão espetacular toma a forma de um combate, de um “match”.
O campo dramático determina assim a idéia trágica e a composição
artística.
Desta forma, vê-se ao mesmo tempo, sobre o palco, o rei Richard
voltar precipitadamente da Irlanda enquanto que seu rival Bolingbroke
conquista as vilas do país de Galles e a Rainha se lamenta em seu
jardim. Roma e Egito estão sobre o palco, visualmente, materialmente
representados, a distância deixando de ser uma função do tempo,
para se tornar o elemento simbólico específico do drama: Antônio
morre e César, ao mesmo tempo diante de nós, mantém o cerco. Nós
não temos hoje a menor idéia do que representava um tal palco,
porque os hábitos visuais do cinema nos acostumaram ao desenrolar da
ação na duração, ao passo que o maior esforço do teatro, no
tempo de Shakespeare, foi o de tentar dar, ao longo do
desenvolvimento das ações simultâneas, uma extensão visível
presente, como acontecia na escultura gótica.
Uma tal maneira de conceber o campo dramático
exige uma tipologia dramática bastante precisa: nós estamos diante
das obras de um Ford ou de um Lope de Vega, na presença de homens
condenados à desordem. Nas peças históricas de Shakespeare,
estamos diante de reis perdidos nos complexos labirintos da
“vendetta” feudal, envolvidos nos mais emaranhados crimes
visíveis
e punidos por castigos também visíveis.
A extrema instabilidade política que preside estas intrigas não
advém do que Shakespeare e seus contemporâneos quiseram contar das
anedotas complicadas e dos minuciosos crimes decalcados à vida
cotidiana do tempo deles, mas da própria natureza do lugar dramático
e do seu sentido profundo. Com efeito, se poderia dizer que este
lugar cristaliza sobre o palco o batimento das temporalidades
internas desta sociedade intermediária entre a sociedade feudal e a
sociedade monárquica absolutista no limiar de um capitalismo
competitivo: este tempo “em atraso” se expressa pelo apego ao
mundo feudal. Porém, o mundo novo aparece ao final de cada peça
quando surge o mediador; não importando se ele é o novo rei,
vencedor do rei anterior, ou se é um usurpador, que a seu tempo,
será punido pelos seus crimes, que ele seja ainda o jovem e
brilhante Fortimbrás, a quem Hamlet dá “sua voz moribunda”. Ele
aparece no crepúsculo de cada drama de Shakespeare para dar fim,
momentaneamente, à sucessão de assassinatos e para propor uma
legalidade provisória. “Finalmente,
nossas feridas civis estão fechadas e a paz renasce”,
diz Richemond no final do Ricardo II;
“Pois hoje, eu espero, começa nossa
felicidade duradoura”, proclama
Eduardo ao final de Henrique VI
(segunda parte); “então, obrigado a
todos e a cada um que nós convidamos a nos ver coroar Scone”,
assevera o jovem Malcolm no final de Macbeth.
Mas, a peça seguinte repete incansavelmente a mesma “série noire”
dos crimes: “Sentemos no chão e
contemos a história lamentável sobre a morte dos reis,
diz Ricardo II, vencido, reis
expropriados, reis assassinados na guerra, reis perseguidos pelos
fantasmas daqueles que eles destronaram, reis envenenados pelas suas
mulheres, reis estrangulados durante os seus sonos – todos
assassinados”.4
Finalmente, nesta longa seqüência, o elemento positivo da cena
final traz uma solução provisória.
Compreendida dentro dos limites deste campo dramático onde o crime é
visível (ao contrário do que se dava nas sociedades comparáveis
àquelas da Antiguidade nas quais o tempo “atrasado nele mesmo”
sufocava Édipo por um crime que ele não havia cometido), o
sofrimento trágico não faz apelo à simpatia do espectador. O
espectador não pode enquanto indivíduo se identificar com Ricardo
II ou Macbeth, ele se situa diante do conjunto do espetáculo visual
O sofrimento trágico supõe que o espectador coletivo se destaque
realmente daquilo que representa esses crimes – o tempo “em
atraso” que se apega ainda ao mundo feudal em via de
desaparecimento. Talvez só exista tragédia e espetáculo dramático
atingindo o poder real nestas épocas emblemáticas, quando a
consciência sofre para destruir as marcas do passado coletivo e
ainda hesita entre o desabrochar que afirma o poder da liberdade e o
sentimento de uma culpabilidade que se apega à consciência de ter
destruído o passado.
Verificam-se então as intermitências dramáticas deste teatro,
essas hesitações entre a realidade e a ficção (Calderon), essas
sucessões de crimes e de bondades (Fletcher), esta tomada de
consciência individual que se revela nos interstícios das comoções
e das infelicidades. Esta consciência só intervém nas fases de
descontração que por vezes se situam na glória (mais raramente) e,
mais amiúde, no mais profundo dos infortúnios. Vencido, o rei João
descobre a música e a paz; aprisionado, o rei Richard medita sobre o
destino coletivo da humanidade; no momento de sua morte, depois de
anos de obscuras crueldades, Macbeth descobre o quanto sua vida foi
sem sentido e vã. Assim, o espectador coletivo é enviado na direção
de sua consciência coletiva, não sendo tomado hipnoticamente pelo
personagem. Compreende-se melhor agora o grande contra-senso
romântico que fez de Hamlet um personagem triste, enquanto que
Shakespeare tinha concebido este papel para um ator extraordinário,
quase um bufão, em todo caso metade bufão.
Finalmente, as formas dramáticas elisabetana e espanhola
desapareceram, no momento em que triunfou na Europa uma nova
concepção, um novo sistema material e psíquico de campo
representativo, aquele da cena italiana. A tragédia estava morta há
muito tempo, e os poetas, individualmente e a despeito de toda
realidade sociológica, iriam sonhar com Shakespeare transpondo suas
formas para um palco que as esterilizava.
Quando o livro de Nicola Sabbattini (nascido em
1574, ano em que Shakespeare se torna co-proprietário do teatro do
Globe com
os irmãos Burbage) aparece na França em 1637, ele não obtém
nenhum sucesso de venda, mas logo seus alunos põem mãos à obra:
Giacomo Torelli de Fano trabalha para o rei da França e,
infelizmente, encena Corneille5.
Um pouco mais tarde, um outro aluno seu, Vigarini, trabalha com
Molière. Rapidamente a escola italiana dominará a Europa e, depois
de Vigarini, virão Bérain (que muito afeito à “tradição” não
será mais do que um decorador à italiana), Servandoni.
Ora, Sabbattini não tinha inventado mais do que
uma coisa: um tipo de lugar cênico que utilizava a maquinaria para
as transformações. Ele tinha simplesmente introduzido no teatro a
perspectiva que já havia, anos antes, revolucionado a pintura. A
relação entre estas duas revoluções afetando as imagens coletivas
de uma época é tão forte que as duas artes se interpenetram sem
vantagem para uma ou para outra. Aquilo que era uma pesquisa plástica
para Uccello, Pietro della Francesca, se torna uma pesquisa do trompe
l’oeil para os alunos de Rafael, ou
para Mantegna, pesquisa sobre o efeito no caso de Caravagio.
Representam-se cenas teatrais em pinturas no momento em que o teatro
constrói seu lugar dramático tal como um quadro. A profunda
modificação acerca do comportamento psicológico advindo desta
transformação não corresponde unicamente àquilo que se chama de a
idade barroca, de Rubens à ópera italiana, mas também do teatro
clássico. Com efeito, Sabbattini concebe a cena como uma pirâmide
visual cuja base é o palco e seu ápice, o olho de cada espectador.
Destas transformações pode-se tirar uma série de conseqüências:
1º A cena deixa de ser o lugar da representação
visível de uma seqüência de ações dramáticas e se torna ao
contrário “o campo de ações de uma sucessão de surpresas”. Se
a cena é oferecida como um conjunto cúbico, é necessário que a
seqüência de cenas repouse num motor invisível: o determinismo
abstrato, absoluto, fechado sobre si mesmo pode recriar o acaso e a
liberdade dentro das fendas do sistema! Lembremos daquela pequena
caixa construída por Brunelleschi e que dentro da qual se podia
olhar por meio de uma pequena fenda: o plano dos volumes e das linhas
do espaço convergindo todas na direção de um ponto focal
imperceptível. A maquinaria sobre a cena vai permitir a utilização
desta ilusão óptica e fazer do teatro uma experiência coletiva de
“hipnose” 6
e de irrealização:
um determinismo artificial é criado para em seguida fazer aparecer o
acaso e a liberdade por trás da imagem visível dos personagens.
2º O espectador se encontra abstratamente separado do grupo coletivo
ao qual ele estaria ligado, quando das representações: se a ilusão
repousa somente nele, é necessário que ele se identifique com o
personagem e transponha para o personagem sua vida psíquica. Brecht,
criticando esta forma de representação, afirmava que ela supõe uma
perda na energia coletiva durante a representação. De fato, somos
conduzidos a uma verdadeira experiência concreta de alienação:
deste momento em diante, o espectador se perde no espetáculo,
acreditando se reencontrar no personagem. Ele, espectador, deixa de
existir por si mesmo enquanto público, não se realizando numa
imagem diferente de sua própria condição.
3º O espetáculo se torna uma féerie,
uma “festa” de um gênero especial, onde o homem oferece a ele
próprio a idéia de uma liberdade da qual ele não dispõe e,
geralmente, a idéia de tudo aquilo que ele não possui. A função
sociológica do teatro com maquinaria e do lugar dramático da cena à
italiana é dupla: por um lado, ela cria no homem uma necessidade
constante de desorientação e de ilusão; por outro lado, ela dá a
este mesmo homem um equivalente analógico enganador daquilo que ele
acredita possuir e não alcançará nunca, visto que ele acreditava
compor e recriar o mundo como o determinismo clássico acreditava
construir o mundo partindo da idéia de Deus. Este é o momento em
que Servandoni pretende dar ao teatro a imagem da natureza, a ilusão
do campo, desta parte do mundo que o grupo humano não poderá mais
recuperar, já que ela está perdida num mundo de signos fixos. Os
cenários de Tancrède
ou de Proserpine
são, deste ponto de vista, tal qual a imagem simbólica das
tentativas do grupo humano (participante de perto da divisão do
poder e da distribuição dos benefícios e vantagens numa sociedade
absolutista) para reconquistar a existência. Num primeiro momento,
identificamos, com Boileau e Racine, as criaturas apresentadas sobre
o palco, com toda a humanidade; num segundo momento, identificamos o
próprio artificial com a natureza. O homem despojado de sua essência
coletiva e de sua liberdade passa a estar na mesma situação do
príncipe Sigismundo de A vida é sonho
de Calderon, só que Calderon, devido ao fato de utilizar a cena em
afresco e o campo dramático dos tablados do mistério, podia
justapor os dois elementos: o da existência concreta e o da ficção,
enquanto que os espectadores do século XVIII (e por vezes até do
século XIX) eram para eles mesmos como príncipes Sigismundo sem se
transformarem nunca em seus próprios espectadores7.
É bem verdade que existe uma tipologia particular em relação a
este sistema do teatro à italiana: é aquele da tragédia clássica
francesa. Sobre o palco estreito os personagens eram espremidos (até
a reforma de Voltaire e de Lauraguais, em 1759) pelos espectadores
ilustres sentados uns sobre os outros, em volta do palco. O centro de
gravidade não é mais dividido lateralmente sobre todos os planos do
espetáculo, ele se concentra na liberdade individual do herói e na
ficção de seu ser interior. Isto é, esta liberdade é uma prisão
e a consciência uma gaiola de onde o homem vem para falar dos seus
infortúnios por meio da linguagem.
Fica claro que, se a tipologia clássica francesa
emprega reis, trata-se de reis diferentes daqueles de Shakespeare ou
de Calderon: seus crimes estão, como os de Augusto, atrás
deles ou, estão, como os de Nero, no
futuro. Trata-se de um mundo onde não
coincidem nunca ação e paixão, a existência e a consciência:
Andrômaca é apegada a um passado que já era e que não volta mais;
Fedra é condenada a possuir somente em imagem o homem que ela ama.
Costuma-se afirmar que os personagens de Molière eram “imaginários”
no sentido que o século XVII dava a esta palavra: isto é, homens
dedicados a perseguirem exclusivamente quimeras. Estes “imaginários”
podiam caracterizar os personagens nascidos da fórmula do teatro à
italiana: a imagem individual que eles fazem deles próprios sobre o
palco não corresponde nunca às suas situações atuais: advém daí
que uma distância psíquica se abre entre aquilo que eles querem ser
e aquilo que eles de fato são. Esta distância confere, é bem
verdade, a seus papéis a amplitude trágica dos heróis de Corneille
ou de Racine, porém esta mesma distância “historiciza” da mesma
forma, ela os reduz à época de onde surgiram.
Que fique bem entendido: nós não pretendemos deduzir da existência
de um certo cenário de teatro, nem tão pouco do estilo barroco de
encenação, a tipologia de personagens dramáticos: parece-nos,
unicamente, que certo tipo de sociedade expressa magnificamente os
conflitos que a afligem no comportamento imaginário e afetivo das
personagens que ela representa em seu teatro. Isto é, no lugar
dramático em geral onde ela situa suas intrigas que por meio de suas
regras formais explicitam até mesmo seus hábitos. O grupo restrito
da platéia e do palco (cuja teatralidade, é verdade, nos escapa
completamente) transpõe, portanto sua existência coletiva por meio
de uma imagem mental que nós chamamos de lugar dramático. Se a cena
à italiana corresponde exatamente à aparição e à vitória da
classe burguesa e do sistema concorrencial na economia, é
precisamente porque, em torno da representação coletiva do lugar
cênico, se condensam os complexos temas da existência social: o
espectador vem viver, por meio da figuração dos personagens,
conflitos inconscientes à existência cotidiana. A sociedade delega
uma parte dela mesma que temporariamente, num grupo restrito, lhe
revela os impasses de sua própria realidade histórica.
Não se trata de deduzir da forma pictural do
cenário, a existência dos personagens, mas de focalizar o seguinte
problema: como tipos dramáticos diferentes tomam lugar na
representação coletiva do lugar cênico. Parece-nos que as duas
maneiras extremas e contraditórias de se conceber o lugar dramático
enquanto representação coletiva acarretam uma definição especial
dos tipos humanos que aí são colocados: na extensão lateral do
palco à afresco, o destino possui menos sentido que a história e o
desenvolvimento: a vida se desenvolve num universo com duas dimensões
onde a vontade se impõe imediatamente, onde os atos agem uns sobre
os outros, onde o encadeamento das ações propicia, visualmente, uma
conseqüência, onde a temporalidade em revés se contrasta com uma
temporalidade moderna na direção da liberdade. O gesto leva a
melhor sobre a palavra e os personagens existem por meio de um certo
comportamento material que os torna contemporâneos dos espectadores.
No lugar dramático à italiana, ao contrário, a sutil retração da
extensão/ duração faz com que o homem se feche em torno de sua
linguagem e de sua consciência individual; a temporalidade
desaparece: ela esmaga o indivíduo, ela faz dele um manequim
(estamos na época dos bonecos de corda onde se tenta macaquear a
vida, como que para provar à existência que podemos viver sem ela),
e também faz com que o indivíduo não possa nunca manifestar sua
vontade real. A extrema individuação dos tipos no teatro clássico
e romântico francês diz respeito à própria natureza da
representação coletiva onde se situam os conflitos dramáticos: a
vida é um bem perdido; nós estamos mortos e não o sabemos, visto
que a trompa de Hernani soa sempre no momento em que pensamos reaver
aquilo que possuímos. A imagem da alienação social transposta se
torna a própria imagem do complexo trágico8.
Desta forma, a cena à italiana corresponde a uma
sociedade que nós acreditávamos mais aberta do que ela parecia ser
na realidade. Visto que nesta sociedade onde o absolutismo real e a
burocracia burguesa dos escritórios substituem o “ofício nobre”:
“a
eficácia da liberdade humana é mais limitada do que se esperava,
devido ao fato da ausência de liberdade civil e política aptas a
servirem de pontos de referência, visto o peso do absolutismo do
Estado monárquico e das hierarquias das ordens oficialmente
estabelecidas... pela interpretação rigorosíssima do determinismo,
e por uma visão muito intelectualizada da liberdade humana, visão
favorecendo a razão teórica em detrimento da vontade e das suas
luzes”9
. O campo dramático, a cena à italiana seqüestram o conteúdo
concreto da liberdade no momento em que os heróis falam da
liberdade: para Auguste, em Cinna,
a liberdade consiste em rememorar a sucessão de seus crimes ou a de
se negar enquanto imperador; já a de Néron, em Britannicus,
equivale a obedecer a representação coletiva que o grupo restrito
dos letrados que leram Tacite impõem à sua realização presente.
Concebe-se melhor a importância desta caixa fechada que é a cena à
italiana com perspectiva em profundidade no momento em que ela se
impõe por toda a Europa: ela é o campo fechado onde são
representados os conflitos que já não podem se materializar na
existência cotidiana. Os gregos urbanizados retiveram e
teatralizaram os deuses ao submetê-los ao suplício no teatro. Os
europeus colocam uma máscara romana ou grega em heróis emprestados
ao universo patriarcal e feudal que as monarquias centralizadoras
destroem. Um sistema social não sucede a um outro sem teatralizar as
classificações e os mitos do precedente, como que para dar uma
última imagem, tornando-o permanente, porém sobre um outro plano, a
sobrevivência, usufruir seu desaparecimento. Para nós, europeus,
foi através destes estreitos meandros e construídos com a ajuda de
máquinas complicadas que se efetuou esta transferência.
1
Tradução de Walter Lima Torres do Cap. III do livro de Jean
DUVIGNAUD. Spectacle
e Société,
Paris, Editions Denoël, 1970, pp. 67-82.
3
É no espírito destes grupos fechados – englobando igualmente os
integrantes da corte – que as tragédias de Garnier, de Baïf, e
de Jodelet foram criadas. O motor dramático era a representação
coletiva que estes grupos se faziam da “fatalidade” antiga.
5
Corneille foi feito para cena simultânea do tipo shakesperiana,
como provam suas primeiras peças (Mélite,
la
Galerie
e até mesmo Le
Cid).
Porém a sociedade parisiense tinha descoberto o palco à italiana e
lhe impôs esta fórmula. O dramaturgo só reencontrará sua
liberdade no final da vida, nas suas últimas obras que,
infelizmente, não são quase nunca representadas.
6
A expressão é de Brecht. Cf.
“Pequeno Organon”, trad. G. Serreau, in Reveue
du Theatre Populaire,
1955.
7
Goethe, em 1777, começa a escrever uma peça: Le
trionphe de la sensibilité,
onde ele faz o processo deste amor pelo artificial e a má fé
sobre a forma que ele implicava: no séc. XIX, o tipo sociológico
do dandy
que se encontra em Balzac, em Stendhal, e em seguida o tipo do snob
em Baudelaire reatualiza, uma vez mais, esta má fé, porém sobre
um plano mais claro: ama-se o artificial justamente porque
ele
é artificial e porque se renuncia à liberdade concreta.
8
Seguramente, certos românticos, na Alemanha sobretudo, conceberam
suas tragédias dentro de uma representação coletiva do lugar
cênico mais próximo daquele de Shakespeare do que de Racine. Não
estamos falando aqui de Schiller ou de Goethe que, apressados em se
livrar da influência da escola francesa, acreditavam que seria
suficiente modificar o conteúdo para modificar também a forma
dramática geral, mas sim de Lenz, de Kleist, de Büchner.
Poderíamos adicionar a esta lista o Lorenzaccio
de Musset. Todos estes dramaturgos morreram tragicamente – a mesma
morte que eles não podiam impor aos seus personagens, suicídio,
loucura ou o mergulho no spleen,
comportamento sociológico de impotência e de ressentimento.
Poderíamos dizer que estes dramaturgos, não podendo impor à sua
época o campo dramático com o qual sonhava um grupo de homens
ainda sem expressão oficial na história, procuravam reatualizar
uma tragédia a qual eles não podiam exibir à sociedade. Nós nos
perguntamos se não se trataria de grupos difusos que não queriam
admitir, inconscientemente ou não, o malogro da revolução
enquanto ruptura total da história. (Cf.
“La tragédie en liberté”, in Revue
du Théatre Populaire,
nº 1, 1953).