quarta-feira, 22 de abril de 2015

DUVIGNAUD, Jean. "SABBATINI E A CAIXA DE ILUSÃO". IN: Spectacle et Société. Paris: Denoël, 1970, pp. 67-82.


Capítulo II

Niccola Sabbattini de Pesaro é um arquiteto e construtor de máquinas nascido em Pouilles, região fecunda em técnicos deste gênero. Ele teria sido mais um entre tantos outros práticos se não tivesse publicado em 1638 um tratado de ilusionismo: Pratica di fabricar scene e machine ne’ teatri 2. Ele não foi o primeiro a escrever um livro deste gênero: la Pratica della prospettiva (1579) o antecedeu, sem comentar os ensaios de Serlio, de Vignola e de todos os outros que o precederam ou o seguiram. Entretanto, este tratado é o mais significativo. Traduzido para o francês e outras línguas, ele será o livro de cabeceira de todos os construtores de espetáculos. Ele definiu uma técnica de ilusionismo e como se dizia então “visionária”.
Sabbattini é importante, sobretudo por ter consolidado um tipo de cena e de construção cênica; por ter permitido uma dicotomia e uma estratificação na experiência imaginária; por ter, de fato, intensificado as capacidades do homem para construir materialmente o seu sonho.
Antes da reforma de Sabbattini, pode-se dizer que existe na Europa, nas sociedades cujas estruturas tendem à aparição do absolutismo esclarecido (ou seja, por volta do final do século XVI), dois grandes sistemas dramáticos que se manifestam por meio de duas noções diferentes sobre o campo de expressão: a concepção greco-latina que sobrevive dentro dos grupos restritos do clero e a concepção do teatro em afresco dos “mistérios”.
A primeira supõe um muro axial, diante do qual um número limitado de personagens vem comentar os acontecimentos. É o princípio das peças de Sêneca e o princípio das peças representadas nas universidades, ou diante dos grupos de eruditos: as pessoas que integram estes grupos não pretendem a espetacularização concreta, mas a sobrevivência; para obter este resultado, elas contam com o discurso entendido aqui como monólogo. A tipologia dos personagens implicados nesta forma de campo dramático é evidentemente muito limitada: é quase sempre depois do acontecimento ou antes do acontecimento que se situa o drama, a expressão pela linguagem da indecisão ou do sofrimento que se apresenta sempre em função de uma mitologia antiga deslocada de seu contexto.
Num certo sentido, estas manifestações não são mais do que cerimônias “mágicas”, por meio das quais os seletos grupos de clérigos tentam não realizar as condições de existência concreta, mas dando a mão à Antiguidade, estabelecer a sua continuidade. Os mitos que eles exploram são literários, não refletindo nenhuma realidade dentro da mentalidade coletiva presente. Contentam-se com um recitativo bem escrito sobre uma infelicidade sobrevinda provavelmente há vários milênios da época em que os autores exibem esta mesma situação. O muro diante do qual se sucedem os monólogos é antes de tudo simbólico: poderíamos dizer que ele separa o teatro da vida social. No lugar do antigo muro, que era como um plano unidimensional de uma frisa, de onde se destacavam fortemente os personagens da tragédia grega, está um esconderijo que permite à sociedade fechada dos clérigos acreditar que vive ainda no século VI a.C. Pode-se afirmar que os dramaturgos franceses do século XVI adotam esta fórmula na exata medida em que eles se opõem à forma tradicional e verdadeiramente coletiva – sociologicamente falando – do lugar dramático: a cena do mistério3.
A cena do mistério é de uma natureza oposta: ao invés de oferecer um lugar dramático abstrato, ela apresenta simultaneamente uma seqüência de quadros vivos. E o tema real da representação é a multidão, difusa, apaixonada, desorganizada que vem à cidade para participar de festejos. Com efeito, nós estamos no âmbito da festa e do cerimonial: o mistério não tende necessariamente na direção da “peça” acabada, ele está sempre a meio caminho entre: a manifestação difusa, metade espetacular, que reúne as massas já agrupadas nas cidades por ocasião de um evento religioso; e os “autos-sacramentais”, obras completas, totais, acabadas e fortemente individualizadas. Aliás, os animadores-autores que nós conhecemos (Arnaud Daniel, Anselme Faidet, Béranger de Parasol), como os organizadores dos espetáculos de farsas, não procuram mais do que apresentar uma “gestualidade”, para tornar espetacular o acontecimento. Porque o acontecimento, ao contrário do que se passa com a outra fórmula dramática, domina aqui o senso literário da expressão: o gesto leva a melhor sobre a palavra. É natural que a ênfase desta concepção se concentre sobre a vida de um santo ou de um homem “interessante”: a existência é aqui “exposta” por inteira.
Entretanto, a expressão mais perfeita desta fórmula encontra-se no teatro elisabetano. Sem dúvida, os dramaturgos, que acompanham Ben Jonson e Shakespeare, são eles também letrados, mas ao contrário dos autores franceses desta época eles sabem tirar partido do campo dramático com construção lateral, implicando a simultaneidade de todos os instantes do tempo. A propósito do campo dramático shakespeariano, Jouvet falava de um “estereoscópio permitindo que se veja a multiplicidade de perspectivas”, sem se valorizar nenhuma: no teatro do Globe, os acontecimentos são realmente apresentados ao espectador coletivo pela ação direta. A construção cênica lembra neste sentido a arte dos antigos afrescos mais do que as frisas gregas: uma superposição de galerias laterais e um palco onde os grupos de personagens se mantêm em cena permite uma representação de todos os momentos do drama. Dentro das perspectivas de uma tal estereoscopia (que se impõe numa arquitetura porque os dramaturgos a haviam experimentado previamente na imaginação coletiva), o real da expressão espetacular toma a forma de um combate, de um “match”. O campo dramático determina assim a idéia trágica e a composição artística.
Desta forma, vê-se ao mesmo tempo, sobre o palco, o rei Richard voltar precipitadamente da Irlanda enquanto que seu rival Bolingbroke conquista as vilas do país de Galles e a Rainha se lamenta em seu jardim. Roma e Egito estão sobre o palco, visualmente, materialmente representados, a distância deixando de ser uma função do tempo, para se tornar o elemento simbólico específico do drama: Antônio morre e César, ao mesmo tempo diante de nós, mantém o cerco. Nós não temos hoje a menor idéia do que representava um tal palco, porque os hábitos visuais do cinema nos acostumaram ao desenrolar da ação na duração, ao passo que o maior esforço do teatro, no tempo de Shakespeare, foi o de tentar dar, ao longo do desenvolvimento das ações simultâneas, uma extensão visível presente, como acontecia na escultura gótica.
Uma tal maneira de conceber o campo dramático exige uma tipologia dramática bastante precisa: nós estamos diante das obras de um Ford ou de um Lope de Vega, na presença de homens condenados à desordem. Nas peças históricas de Shakespeare, estamos diante de reis perdidos nos complexos labirintos da “vendetta” feudal, envolvidos nos mais emaranhados crimes visíveis e punidos por castigos também visíveis. A extrema instabilidade política que preside estas intrigas não advém do que Shakespeare e seus contemporâneos quiseram contar das anedotas complicadas e dos minuciosos crimes decalcados à vida cotidiana do tempo deles, mas da própria natureza do lugar dramático e do seu sentido profundo. Com efeito, se poderia dizer que este lugar cristaliza sobre o palco o batimento das temporalidades internas desta sociedade intermediária entre a sociedade feudal e a sociedade monárquica absolutista no limiar de um capitalismo competitivo: este tempo “em atraso” se expressa pelo apego ao mundo feudal. Porém, o mundo novo aparece ao final de cada peça quando surge o mediador; não importando se ele é o novo rei, vencedor do rei anterior, ou se é um usurpador, que a seu tempo, será punido pelos seus crimes, que ele seja ainda o jovem e brilhante Fortimbrás, a quem Hamlet dá “sua voz moribunda”. Ele aparece no crepúsculo de cada drama de Shakespeare para dar fim, momentaneamente, à sucessão de assassinatos e para propor uma legalidade provisória. “Finalmente, nossas feridas civis estão fechadas e a paz renasce”, diz Richemond no final do Ricardo II; “Pois hoje, eu espero, começa nossa felicidade duradoura”, proclama Eduardo ao final de Henrique VI (segunda parte); “então, obrigado a todos e a cada um que nós convidamos a nos ver coroar Scone”, assevera o jovem Malcolm no final de Macbeth. Mas, a peça seguinte repete incansavelmente a mesma “série noire” dos crimes: “Sentemos no chão e contemos a história lamentável sobre a morte dos reis, diz Ricardo II, vencido, reis expropriados, reis assassinados na guerra, reis perseguidos pelos fantasmas daqueles que eles destronaram, reis envenenados pelas suas mulheres, reis estrangulados durante os seus sonos – todos assassinados”.4 Finalmente, nesta longa seqüência, o elemento positivo da cena final traz uma solução provisória.
Compreendida dentro dos limites deste campo dramático onde o crime é visível (ao contrário do que se dava nas sociedades comparáveis àquelas da Antiguidade nas quais o tempo “atrasado nele mesmo” sufocava Édipo por um crime que ele não havia cometido), o sofrimento trágico não faz apelo à simpatia do espectador. O espectador não pode enquanto indivíduo se identificar com Ricardo II ou Macbeth, ele se situa diante do conjunto do espetáculo visual O sofrimento trágico supõe que o espectador coletivo se destaque realmente daquilo que representa esses crimes – o tempo “em atraso” que se apega ainda ao mundo feudal em via de desaparecimento. Talvez só exista tragédia e espetáculo dramático atingindo o poder real nestas épocas emblemáticas, quando a consciência sofre para destruir as marcas do passado coletivo e ainda hesita entre o desabrochar que afirma o poder da liberdade e o sentimento de uma culpabilidade que se apega à consciência de ter destruído o passado.
Verificam-se então as intermitências dramáticas deste teatro, essas hesitações entre a realidade e a ficção (Calderon), essas sucessões de crimes e de bondades (Fletcher), esta tomada de consciência individual que se revela nos interstícios das comoções e das infelicidades. Esta consciência só intervém nas fases de descontração que por vezes se situam na glória (mais raramente) e, mais amiúde, no mais profundo dos infortúnios. Vencido, o rei João descobre a música e a paz; aprisionado, o rei Richard medita sobre o destino coletivo da humanidade; no momento de sua morte, depois de anos de obscuras crueldades, Macbeth descobre o quanto sua vida foi sem sentido e vã. Assim, o espectador coletivo é enviado na direção de sua consciência coletiva, não sendo tomado hipnoticamente pelo personagem. Compreende-se melhor agora o grande contra-senso romântico que fez de Hamlet um personagem triste, enquanto que Shakespeare tinha concebido este papel para um ator extraordinário, quase um bufão, em todo caso metade bufão.
Finalmente, as formas dramáticas elisabetana e espanhola desapareceram, no momento em que triunfou na Europa uma nova concepção, um novo sistema material e psíquico de campo representativo, aquele da cena italiana. A tragédia estava morta há muito tempo, e os poetas, individualmente e a despeito de toda realidade sociológica, iriam sonhar com Shakespeare transpondo suas formas para um palco que as esterilizava.
Quando o livro de Nicola Sabbattini (nascido em 1574, ano em que Shakespeare se torna co-proprietário do teatro do Globe com os irmãos Burbage) aparece na França em 1637, ele não obtém nenhum sucesso de venda, mas logo seus alunos põem mãos à obra: Giacomo Torelli de Fano trabalha para o rei da França e, infelizmente, encena Corneille5. Um pouco mais tarde, um outro aluno seu, Vigarini, trabalha com Molière. Rapidamente a escola italiana dominará a Europa e, depois de Vigarini, virão Bérain (que muito afeito à “tradição” não será mais do que um decorador à italiana), Servandoni.
Ora, Sabbattini não tinha inventado mais do que uma coisa: um tipo de lugar cênico que utilizava a maquinaria para as transformações. Ele tinha simplesmente introduzido no teatro a perspectiva que já havia, anos antes, revolucionado a pintura. A relação entre estas duas revoluções afetando as imagens coletivas de uma época é tão forte que as duas artes se interpenetram sem vantagem para uma ou para outra. Aquilo que era uma pesquisa plástica para Uccello, Pietro della Francesca, se torna uma pesquisa do trompe l’oeil para os alunos de Rafael, ou para Mantegna, pesquisa sobre o efeito no caso de Caravagio. Representam-se cenas teatrais em pinturas no momento em que o teatro constrói seu lugar dramático tal como um quadro. A profunda modificação acerca do comportamento psicológico advindo desta transformação não corresponde unicamente àquilo que se chama de a idade barroca, de Rubens à ópera italiana, mas também do teatro clássico. Com efeito, Sabbattini concebe a cena como uma pirâmide visual cuja base é o palco e seu ápice, o olho de cada espectador.
Destas transformações pode-se tirar uma série de conseqüências:
1º A cena deixa de ser o lugar da representação visível de uma seqüência de ações dramáticas e se torna ao contrário “o campo de ações de uma sucessão de surpresas”. Se a cena é oferecida como um conjunto cúbico, é necessário que a seqüência de cenas repouse num motor invisível: o determinismo abstrato, absoluto, fechado sobre si mesmo pode recriar o acaso e a liberdade dentro das fendas do sistema! Lembremos daquela pequena caixa construída por Brunelleschi e que dentro da qual se podia olhar por meio de uma pequena fenda: o plano dos volumes e das linhas do espaço convergindo todas na direção de um ponto focal imperceptível. A maquinaria sobre a cena vai permitir a utilização desta ilusão óptica e fazer do teatro uma experiência coletiva de “hipnose” 6 e de irrealização: um determinismo artificial é criado para em seguida fazer aparecer o acaso e a liberdade por trás da imagem visível dos personagens.
2º O espectador se encontra abstratamente separado do grupo coletivo ao qual ele estaria ligado, quando das representações: se a ilusão repousa somente nele, é necessário que ele se identifique com o personagem e transponha para o personagem sua vida psíquica. Brecht, criticando esta forma de representação, afirmava que ela supõe uma perda na energia coletiva durante a representação. De fato, somos conduzidos a uma verdadeira experiência concreta de alienação: deste momento em diante, o espectador se perde no espetáculo, acreditando se reencontrar no personagem. Ele, espectador, deixa de existir por si mesmo enquanto público, não se realizando numa imagem diferente de sua própria condição.
3º O espetáculo se torna uma féerie, uma “festa” de um gênero especial, onde o homem oferece a ele próprio a idéia de uma liberdade da qual ele não dispõe e, geralmente, a idéia de tudo aquilo que ele não possui. A função sociológica do teatro com maquinaria e do lugar dramático da cena à italiana é dupla: por um lado, ela cria no homem uma necessidade constante de desorientação e de ilusão; por outro lado, ela dá a este mesmo homem um equivalente analógico enganador daquilo que ele acredita possuir e não alcançará nunca, visto que ele acreditava compor e recriar o mundo como o determinismo clássico acreditava construir o mundo partindo da idéia de Deus. Este é o momento em que Servandoni pretende dar ao teatro a imagem da natureza, a ilusão do campo, desta parte do mundo que o grupo humano não poderá mais recuperar, já que ela está perdida num mundo de signos fixos. Os cenários de Tancrède ou de Proserpine são, deste ponto de vista, tal qual a imagem simbólica das tentativas do grupo humano (participante de perto da divisão do poder e da distribuição dos benefícios e vantagens numa sociedade absolutista) para reconquistar a existência. Num primeiro momento, identificamos, com Boileau e Racine, as criaturas apresentadas sobre o palco, com toda a humanidade; num segundo momento, identificamos o próprio artificial com a natureza. O homem despojado de sua essência coletiva e de sua liberdade passa a estar na mesma situação do príncipe Sigismundo de A vida é sonho de Calderon, só que Calderon, devido ao fato de utilizar a cena em afresco e o campo dramático dos tablados do mistério, podia justapor os dois elementos: o da existência concreta e o da ficção, enquanto que os espectadores do século XVIII (e por vezes até do século XIX) eram para eles mesmos como príncipes Sigismundo sem se transformarem nunca em seus próprios espectadores7.
É bem verdade que existe uma tipologia particular em relação a este sistema do teatro à italiana: é aquele da tragédia clássica francesa. Sobre o palco estreito os personagens eram espremidos (até a reforma de Voltaire e de Lauraguais, em 1759) pelos espectadores ilustres sentados uns sobre os outros, em volta do palco. O centro de gravidade não é mais dividido lateralmente sobre todos os planos do espetáculo, ele se concentra na liberdade individual do herói e na ficção de seu ser interior. Isto é, esta liberdade é uma prisão e a consciência uma gaiola de onde o homem vem para falar dos seus infortúnios por meio da linguagem.
Fica claro que, se a tipologia clássica francesa emprega reis, trata-se de reis diferentes daqueles de Shakespeare ou de Calderon: seus crimes estão, como os de Augusto, atrás deles ou, estão, como os de Nero, no futuro. Trata-se de um mundo onde não coincidem nunca ação e paixão, a existência e a consciência: Andrômaca é apegada a um passado que já era e que não volta mais; Fedra é condenada a possuir somente em imagem o homem que ela ama. Costuma-se afirmar que os personagens de Molière eram “imaginários” no sentido que o século XVII dava a esta palavra: isto é, homens dedicados a perseguirem exclusivamente quimeras. Estes “imaginários” podiam caracterizar os personagens nascidos da fórmula do teatro à italiana: a imagem individual que eles fazem deles próprios sobre o palco não corresponde nunca às suas situações atuais: advém daí que uma distância psíquica se abre entre aquilo que eles querem ser e aquilo que eles de fato são. Esta distância confere, é bem verdade, a seus papéis a amplitude trágica dos heróis de Corneille ou de Racine, porém esta mesma distância “historiciza” da mesma forma, ela os reduz à época de onde surgiram.
Que fique bem entendido: nós não pretendemos deduzir da existência de um certo cenário de teatro, nem tão pouco do estilo barroco de encenação, a tipologia de personagens dramáticos: parece-nos, unicamente, que certo tipo de sociedade expressa magnificamente os conflitos que a afligem no comportamento imaginário e afetivo das personagens que ela representa em seu teatro. Isto é, no lugar dramático em geral onde ela situa suas intrigas que por meio de suas regras formais explicitam até mesmo seus hábitos. O grupo restrito da platéia e do palco (cuja teatralidade, é verdade, nos escapa completamente) transpõe, portanto sua existência coletiva por meio de uma imagem mental que nós chamamos de lugar dramático. Se a cena à italiana corresponde exatamente à aparição e à vitória da classe burguesa e do sistema concorrencial na economia, é precisamente porque, em torno da representação coletiva do lugar cênico, se condensam os complexos temas da existência social: o espectador vem viver, por meio da figuração dos personagens, conflitos inconscientes à existência cotidiana. A sociedade delega uma parte dela mesma que temporariamente, num grupo restrito, lhe revela os impasses de sua própria realidade histórica.
Não se trata de deduzir da forma pictural do cenário, a existência dos personagens, mas de focalizar o seguinte problema: como tipos dramáticos diferentes tomam lugar na representação coletiva do lugar cênico. Parece-nos que as duas maneiras extremas e contraditórias de se conceber o lugar dramático enquanto representação coletiva acarretam uma definição especial dos tipos humanos que aí são colocados: na extensão lateral do palco à afresco, o destino possui menos sentido que a história e o desenvolvimento: a vida se desenvolve num universo com duas dimensões onde a vontade se impõe imediatamente, onde os atos agem uns sobre os outros, onde o encadeamento das ações propicia, visualmente, uma conseqüência, onde a temporalidade em revés se contrasta com uma temporalidade moderna na direção da liberdade. O gesto leva a melhor sobre a palavra e os personagens existem por meio de um certo comportamento material que os torna contemporâneos dos espectadores. No lugar dramático à italiana, ao contrário, a sutil retração da extensão/ duração faz com que o homem se feche em torno de sua linguagem e de sua consciência individual; a temporalidade desaparece: ela esmaga o indivíduo, ela faz dele um manequim (estamos na época dos bonecos de corda onde se tenta macaquear a vida, como que para provar à existência que podemos viver sem ela), e também faz com que o indivíduo não possa nunca manifestar sua vontade real. A extrema individuação dos tipos no teatro clássico e romântico francês diz respeito à própria natureza da representação coletiva onde se situam os conflitos dramáticos: a vida é um bem perdido; nós estamos mortos e não o sabemos, visto que a trompa de Hernani soa sempre no momento em que pensamos reaver aquilo que possuímos. A imagem da alienação social transposta se torna a própria imagem do complexo trágico8.
Desta forma, a cena à italiana corresponde a uma sociedade que nós acreditávamos mais aberta do que ela parecia ser na realidade. Visto que nesta sociedade onde o absolutismo real e a burocracia burguesa dos escritórios substituem o “ofício nobre”: a eficácia da liberdade humana é mais limitada do que se esperava, devido ao fato da ausência de liberdade civil e política aptas a servirem de pontos de referência, visto o peso do absolutismo do Estado monárquico e das hierarquias das ordens oficialmente estabelecidas... pela interpretação rigorosíssima do determinismo, e por uma visão muito intelectualizada da liberdade humana, visão favorecendo a razão teórica em detrimento da vontade e das suas luzes9 . O campo dramático, a cena à italiana seqüestram o conteúdo concreto da liberdade no momento em que os heróis falam da liberdade: para Auguste, em Cinna, a liberdade consiste em rememorar a sucessão de seus crimes ou a de se negar enquanto imperador; já a de Néron, em Britannicus, equivale a obedecer a representação coletiva que o grupo restrito dos letrados que leram Tacite impõem à sua realização presente.
Concebe-se melhor a importância desta caixa fechada que é a cena à italiana com perspectiva em profundidade no momento em que ela se impõe por toda a Europa: ela é o campo fechado onde são representados os conflitos que já não podem se materializar na existência cotidiana. Os gregos urbanizados retiveram e teatralizaram os deuses ao submetê-los ao suplício no teatro. Os europeus colocam uma máscara romana ou grega em heróis emprestados ao universo patriarcal e feudal que as monarquias centralizadoras destroem. Um sistema social não sucede a um outro sem teatralizar as classificações e os mitos do precedente, como que para dar uma última imagem, tornando-o permanente, porém sobre um outro plano, a sobrevivência, usufruir seu desaparecimento. Para nós, europeus, foi através destes estreitos meandros e construídos com a ajuda de máquinas complicadas que se efetuou esta transferência.
1 Tradução de Walter Lima Torres do Cap. III do livro de Jean DUVIGNAUD. Spectacle e Société, Paris, Editions Denoël, 1970, pp. 67-82.
2 Existe uma tradução deste livro reproduzindo as pranchas publicadas por Ides et Calendes, 1942.
3 É no espírito destes grupos fechados – englobando igualmente os integrantes da corte – que as tragédias de Garnier, de Baïf, e de Jodelet foram criadas. O motor dramático era a representação coletiva que estes grupos se faziam da “fatalidade” antiga.
4 Ricardo II, ato III, cena 2.
5 Corneille foi feito para cena simultânea do tipo shakesperiana, como provam suas primeiras peças (Mélite, la Galerie e até mesmo Le Cid). Porém a sociedade parisiense tinha descoberto o palco à italiana e lhe impôs esta fórmula. O dramaturgo só reencontrará sua liberdade no final da vida, nas suas últimas obras que, infelizmente, não são quase nunca representadas.
6 A expressão é de Brecht. Cf. “Pequeno Organon”, trad. G. Serreau, in Reveue du Theatre Populaire, 1955.
7 Goethe, em 1777, começa a escrever uma peça: Le trionphe de la sensibilité, onde ele faz o processo deste amor pelo artificial e a má fé sobre a forma que ele implicava: no séc. XIX, o tipo sociológico do dandy que se encontra em Balzac, em Stendhal, e em seguida o tipo do snob em Baudelaire reatualiza, uma vez mais, esta má fé, porém sobre um plano mais claro: ama-se o artificial justamente porque ele é artificial e porque se renuncia à liberdade concreta.
8 Seguramente, certos românticos, na Alemanha sobretudo, conceberam suas tragédias dentro de uma representação coletiva do lugar cênico mais próximo daquele de Shakespeare do que de Racine. Não estamos falando aqui de Schiller ou de Goethe que, apressados em se livrar da influência da escola francesa, acreditavam que seria suficiente modificar o conteúdo para modificar também a forma dramática geral, mas sim de Lenz, de Kleist, de Büchner. Poderíamos adicionar a esta lista o Lorenzaccio de Musset. Todos estes dramaturgos morreram tragicamente – a mesma morte que eles não podiam impor aos seus personagens, suicídio, loucura ou o mergulho no spleen, comportamento sociológico de impotência e de ressentimento. Poderíamos dizer que estes dramaturgos, não podendo impor à sua época o campo dramático com o qual sonhava um grupo de homens ainda sem expressão oficial na história, procuravam reatualizar uma tragédia a qual eles não podiam exibir à sociedade. Nós nos perguntamos se não se trataria de grupos difusos que não queriam admitir, inconscientemente ou não, o malogro da revolução enquanto ruptura total da história. (Cf. “La tragédie en liberté”, in Revue du Théatre Populaire, nº 1, 1953).

9 Georges Gurvitch: Determinismes sociaux et liberté humaine, PUF.