sábado, 12 de julho de 2008

Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumeanau

Galette Surprise et son coulis de fruits rouges. De Laura Fernandez e Direção de Diego Brienza. La Mano Marca – IUNA, Buenos Aires Argentina. ************************************************************************************
Inicialmente gostaria de não esquecer de comentar dois pontos mais operacionais que já havia comentado com Diego ontem. O primeiro foi a ausência de criação, por meio de som e luz do outro espaço. O plano da sala do restaurante, seu ambiente, seus barulhos característicos que poderiam ir do efeito de realidade de uma sala normal de restaurante até o trágico desfecho quando já estão todos morrendo aos poucos. Trata-se de ajustar melhor o fluxo do atores nesse vai e vem entre sala e cozinha que acaba dando a base de realidade para que a situação possa evoluir para outro plano, para além do real. O segundo foi a grata e inusitada participação especial da atriz de Campinas. Apesar da surpresa que nos gera uma certa estranheza o estado dela pela procura do banheiro, naquela altura dos acontecimentos, não adensa o que a situação promete. Dali para diante, a procura pelo toalete deveria ser imperiosa, mais intensa, com a possibilidade de imaginarmos inclusive outras pessoas circulando a procura de melhora diante da contaminação. Este é o segundo texto de Laura Fernandez nesse Festival. Assim como o primeiro o título da obra é bastante sugestivo e apetitoso, Galette Surprise et son coulis de fruits rouges. Galette e Crepes são dois desses saborosos pratos realizados rapidamente, pela cozinha francesa. Fez mais ou menos à volta ao mundo e não há lugar que não haja uma creperia. Os dois pratos são feitos a base de farinha. Um doce, o crepe e o outro salgado, a galette. Aqui galette pode ser o prato e também o nome do restaurante. Como aquele imortalizado pela tela impressionista de Renoir, Le Moulin de la Galette que irradia a alegria preguiçosa de uma tarde de domingo daquelas figuras despreocupadas e descontraídas. O caso é que há uma surpresa nesse prato ou nesse restaurante. E mais do que isso, a galette está acompanhada de frutos vermelhos, uma saca ou uma sacola de frutos vermelhos... Seriam eles comprometedores? É servido aos espectadores, antes da entrada um pastelzinho (las empanadas) que provavelmente faz menção às especialidades servidas pelo restaurante. Entramos e nos defrontamos com a cozinha do dito restaurante. Uma natureza morta! A cozinha é por excelência um local de experiências. Talvez sejam as cozinhas as últimas lembranças de um local alquímico. O local da transformação. Não seria ela uma metáfora do próprio teatro, um local de transformação do espírito? A alquimia tinha três objetivos básicos: a transformação de metais inferiores em ouro; a procura pelo elixir da longa vida e a criação de vida artificial. Nesta cozinha está O Cozinheiro, caracterizado meio como que o falso Sheik Ahmed de Rodolfo Valentino, com a cabeça coberta, a se proteger, e seu uniforme branco característico de cozinheiro, o engenheiro da alquimia. O detentor das receitas. O mediador entre aquilo que entra cru e sai cozido. O senhor dos efeitos e dos segredos dos pratos. Aos poucos aprendemos que Ele, curiosamente, assim como o Sheik de Valentino, também é um Estrangeiro no país exótico onde vive, ele é um Cozinheiro francês. Normalmente, o estrangeiro é sempre motivo de riso e pilhéria. Seu sotaque e seu desconhecimento da cultura local, normalmente o envolve em confusões e mal-entendidos. Seria o caso aqui também? Também, por ser estrangeiro atrai a atenção e desfruta da primazia de ser o novo, o diferente, fonte de exotismo atrativa. E dessa forma parece ter despertado a atenção e a paixão na Moça (Garçonete), que na verdade é desejada pelo Moço (Garçon) que por sua vez é a paixão da Noiva (Gerente). Estamos quase lá “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante” de Peter Greenaway. Estamos quase lá, no universo do filme citado pela peça ou aludido pela encenação, visto que sobre a mesa de preparação dos inocentes crepes e galettes, apesar de não dar para ver muito bem, ao final do espetáculo, é revelado o desenho de um corpo disfarçado por frutas e alfaces. Estamos quase lá no canibalismo do filme. Eu disse quase... Apesar desse quarteto estar enfeitiçado pelas paixões e pelo amor isso só se realiza num plano onírico, ou do desejo sonhado, desenhado pelos flashs da luz vermelha. Entretanto, o único que parece não se manifestar no extravasamento de sua paixão é o próprio Sheik, o Cozinheiro. Enquanto essas declarações de amor vão se sucedendo no ambiente dessa cozinha subterrânea, no fundo do sonho, vai transcorrendo no alto, na sala do restaurante o pesadelo. Uma espécie de contaminação geral dos clientes, uma sorte de epidemia, uma peste que se abate sobre eles, uma contaminação geral de todos por uma intoxicação advinda dos pratos ali preparados. Todos os clientes são abatidos, até aqueles que não comeram e que só beberam, um efeito alquímico destruidor, de vasta proporção, que os arrasa. E não há saída, pois se eles regurgitam logo se contaminam pelo retorno de seus próprios vômitos, o que acaba reforçando a impossibilidade de salvação e só aumenta a contaminação geral. A maneira dos Rinocerontes de Ionesco, a população dos clientes do restaurante vai se transformando nessa massa putrefata de corpos abatidos pelo mortífero efeito do veneno. Assim como nós que também provamos no início as empanadas... Do quarteto amoroso e apaixonado quem seria o assassino? Todos suspeitam de todos? Não há acusações. Quem teria motivos para envenenar toda essa população? Com qual a motivação? Vingança? Nosso Sheik, cozinheiro insatisfeito? A única coisa a fazer é se salvar abandonar o barco, fugir. E aí os planos de fuga são esboçados. Ao partirem, continuarão, assim, de lugar em lugar brincando de assassinos? Aproveitando-se da falsa aparência de uma inocente creperia para contaminar a todos com seu jogo mortífero? Parece haver algo de podre na Sala de Jantar e de Doente, muito doente na cozinha do Galette-Argentina.

Festival Internacional de Teatro Universitário - Blumenau

Sapato sujo na soleira da Porta. Orientação, Grácia Navarro. Grupo do Trecho, UNICAMP, SP.
************************************************************************************* Fomos convidados a tomar um ônibus e seguir para o local escolhido pelo Grupo do Trecho. – “Para uma visita ao Albergue da cidade”, informou a voz que organizava a excursão. Quanto mais nos distanciávamos do centro da cidade, deixando pra trás a cenografia fake do cenário da colonização alemã, mais adentrávamos na Blumenau profunda, em um dos seus interiores que até então a festa do festival e o movimento da rua XV nos impediam até de imaginar que isso existiria por aqui. Saímos do centro e fomos para periferia, fora do centro. Pouquinho antes de chegar uma atriz representando um Repórter se junta ao grupo e procura “adensar”, nosso olhar e nossa percepção sobre nosso destino, com seus comentários e perguntas. Não precisava exagerar na visita guiada, o grupo já ia tirando suas conclusões e meditando sobre a excêntrica viagem. Sua tentativa de travar uma conversa com os passageiros-espectadores da excursão parecia querer esquentar, preparar-nos para visita guiada até o local da situação, uma espécie de prólogo cifrado. Eu aproveitava para meditar sobre o fato de que, de maneira geral, é no percurso que nos transformamos efetivamente em espectador, que nos colocamos em estado de alerta e interesse diante do fato teatral. Isso para qualquer espetáculo. Chegamos. Ao adentrarmos nos limites do Albergue nos deparamos com outro personagem, aquele do “Eu sou um engodo!”, de chapeuzinho Árabe. A visita guiada não é tão guiada assim, pois se trata de uma reportagem que está acontecendo, onde a Repórter além de tirar fotos parece irradiar ou gravar os acontecimentos com um outro aparelho meio rádio, meio gravador, pouco importa, isso não faz a menor diferença. A repórter parece conhecer tudo que de antemão pergunta. Não há surpresas. Ela transita pelo espaço como se o conhecesse. Ela não o descobre. Seria ela uma albergada que fingiria ser um repórter para dar algum sentido a essas vidas reclusas? A minha primeira impressão como espectador-visitante ao local é de total violência! É ultrajante! É um abuso desnecessário explorar esse ambiente de onde se depreende uma sórdida precariedade local. Qual o limite entre a ficção e o real? O real é a realidade daquele ambiente, carregado de um odor característico; úmido molhado; o provisório das instalações, e tudo que todo mundo viu e pode imaginar. Não vou me alongar. De onde estava via os beliches escuros e as cobertas, imaginava o estado daquelas instalações pelo interior; o frio opressor; a chuva; a lama; o sapato sujo na soleira da porta; algumas figuras deitadas em suas camas olhando fixamente o nada; pouca gente de lá assistindo a peça. Comparava aquelas instalações e ambiente do Albergue, com a da Colônia de Paracambi, no Rio de Janeiro, que visitei há tempos atrás. Enquanto eu trocava umas rápidas palavras com o Sr. e a Sra. que me explicavam sobre os tapetes e as sacolas que eles produzem e que são vendidos na PROEB, a representação da reportagem prosseguia e cada vez mais nosso falso guia, a Repórter adentrava-nos no coração do seu fato jornalístico; ou seria uma pesquisa antropológica? Ou um programa daquele tipo Mundo cão! Não... A reportagem avançava. E das entrevistas a Repórter arrancava dramas que se sucediam, foi-nos contadas as histórias da Loura, da Noiva, do Mergulhador, com direito à participação especial de algumas albergadas, uma como Cigana, a outra como Dama de Honra da Noiva e a Mulher do Bar... Nosso turismo exótico continuava... Por conta da situação ficcional ouvíamos sempre relatos do Eu. Depoimentos. Isto é uma espécie de Dramaturgia do Eu-Biografado que era reiterada por cada ator ao representar seu Tipo-Afligido pelo flagelo da desesperança e do esquecimento. Todos, não só os seres ficcionais e os albergados, todos ao perdermos algo, passamos a construir a espera por outro algo. Em alguma medida essa construção simbólica se instaura. Parece ser essa também a crise das figuras ali representadas, incluindo a Repórter. O Relato da perda e da tentativa de reparação que nunca chega. A projeção para o futuro por conta do Encontro redentor! O caso é que meu espírito mantinha-se dividido. Pra mim isso que acabo de descrever não era o mais importante. Era assistido de rabo de olho. Apesar de reconhecer que todos os integrantes do grupo são muito bons atores dando claras demonstrações de suas habilidades e competências performativas. A realidade chamava meus olhos com a urgência que só a vida pode ter. E eu pensava... Mas, por que trazer essas histórias para esse ambiente? Não havia albergados lá ontem? Se eu fosse Albergado, deprimido e estivesse no estado daqueles senhores lá, isto é, no limbo existencial, “mas é nunca que eu queria ver a história da minha vida sendo contada, repetda assim na minha cara e diante de todo mundo...” Meio sociodrama ou psicodrama... Vou explicar para o Sem Terra, o que é não ter a terra? Ele sabe melhor do que eu. Talvez, sim, possamos fazer alguma coisa juntos e permitir que ele me descubra integralmente e me reconheça como um outro. Coisa difícil para quem perdeu sua estima. Eu deduzia... Mas o Grupo deve ter feito uma pesquisa de campo, um exercício antropológico para descobrir essas histórias todas que está nos contando, mas por que contá-las nesse lugar? Ele é imprescindível? Que diferença faz contar aqui ou na rua? Ou numa praça ou parque? Claro, entendi que não se trataria aí de teatro de rua, mas sim de teatro na rua... Saímos do centro e fomos para periferia. E na periferia permanecemos. Pois nossa visita turística também foi periférica. Só circulávamos no perímetro do albergue sem adentrar em seu centro. Talvez tenha sido uma imposição do pessoal da Sala dos Educadores do Abrigo? Pouco importa... Só corremos o perímetro do perfil daquelas criaturas, jamais seus corações... O Grupo escolheu os lugares mais adequados para “representar” suas histórias, esses documentos de vida e morte, mas sempre contornando o problema, assim como contornava a própria dramaturgia do espetáculo que dava voz ao excluído. No plano ficcional, pareceu-me que a representação da reportagem terminara quando a Repórter fora tragada pelas demais figuras por conta de um saturamento provocado por sua intromissão num “universo” que acabava por subtrair a sua voz de matraca. Fim! Aplaudo? Vou aplaudir o que? A miséria humana? A solidão do Sem domicílio Fixo? A atuação dos artistas que é capaz de imitar com sucesso um ente desesperado, sem abrigo e meio biruta? Eu já sou tímido. Fiquei mais intimidado ainda diante da possibilidade de manifestar fisicamente o que quer que fosse ali, diante daquelas pessoas, diante do que aquela instituição significa. E depois tem o apito! Aquela autoridade meio rerpressora... Impasse. Apesar da construção de um realismo fantástico ou meio mágico por conta das atuações, como bem me comentou o prof, Stephan em nosso bate papo depois, constatei pra mim a total inadequação daquele lugar para realização de vocês, e constrangimento que parece era maior para nós na condição de espectador-turista. Para os Albergados ficou, suponho, com licença da presunção, suponho que tenha ficado somente, a indiferença, graças ao artificialismo da situação. Nos perguntávamos já na volta, com o Renato, Natasha e uma Senhora que era público de verdade: Os Albergados elegeram vocês para contar as histórias de vida deles? O que legitima a posição do grupo diante de tamanha intromissão num ambiente que não acrescenta, absolutamente, nada à história que o grupo quer nos contar? E aí? Você chega, pede licença monta sua peça. Eles ajudam um pouquinho. Vamos embora e fica tudo como estava antes. Se o teatro é uma arte tão subversiva e transformadora, em que medida vosso grupo anda operando essa transformação pelos Albergues que vem passando. Bacana! Teatro como ação social e movimento de reintegração na vida tributária daqueles que ainda não se adaptaram bem a ela. Bacana... Seus Biografados, aqueles da pesquisa de campo. O que receberam de vocês? Ou, o que mudou na situação deles depois que vocês apresentaram as suas histórias ficcionais baseadas nessas histórias reais? Num dos filmes que o prof. Faleiro selecionou para mostra de Vídeo, a um em especial que se destaca e pode ajudar-nos aqui na nossa meditação sobre o caso específico de ontem, Um Soleil à Kaboul. Nesse documentário onde Arianne Mnouchkine e sua trupe se deslocam até o Afeganistão ela oferece aos teatristas locais o que ela sabe fazer de melhor, é claro, o seu teatro, oficinas. E em meio à delicada experiência de trocas simbólicas interculturais, com o risco da guerra, ela diz a um grupo de atores afegãos que eles têm uma missão. A missão deles, segundo ela, é trabalhar na reversão do uso da burka que o costume cultural local impinge a Mulher. Sabe lá o que é ter que ver o mundo por uma janela que ao mesmo tempo me esconde de tudo... O que me interessa aqui é pensar essa atribuição de uma missão? Quem delegou essa missão a vocês necessita trabalhar para ajustar o curso das relações, para pensar estratégias e procedimentos que ultrapassem o próprio teatro, se for o caso, naturalmente. O problema que o trabalho de vocês nos coloca é o problema da ética, como todos estamos a comentar. Da ética profissional. Quais são os limites das relações estabelecidas entre entrevistador e entrevistado? Eu tenho a autorização desses seres estudados para por sua as suas trajetórias em cena? Apesar de recriadas poeticamente? A pesquisa de vocês envolve seres humanos, apesar de serem aqueles que estão em estado de risco, de abandono, e sem domicílio fixo, quase ninguém. Os procedimentos dispensados por vocês na apresentação são de natureza absolutamente invasiva e intimidante. Pode ser que vocês se sintam protegidos por se “transformarem” em mais um deles, albergados, e todo esse desconforto seja só meu de espectador inadvertido. Acho que têm razão Joazinho Trinta que disse: “O povo gosta de luxo. Quem gosta de pobreza é intelectual”.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

22 FITUB - Mirandolina

Mirandolina de Carlo Goldoni
Direção de Márcio Tadeu, Cia de Teatro a Blau quer falar, UNICAMP, Campinas.
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Parafraseando Bernard Dort em O Teatro e sua realidade eu também pergunto: Por que montar Goldoni, hoje? A pergunta pode soar estranha, mas a resposta me parece muito lógica. Ora, Goldoni é um clássico. Não é brasileiro, mas é quase. É italiano. E a Itália é logo ali. Sobretudo a Itália da nossa imaginação. É quase como se fosse brasileiro. Depois tem a tradição. Esse texto já foi montado no Brasil várias vezes. Que eu me lembre de cabeça pelo menos por Bibi Ferreira e seu Pai, o célebre ator Procópio Ferreira lá pelos anos 50 ou 60. E depois foi montado também pela Dona Fernanda com o Teatro dos Sete, Sérgio Brito e Ítalo Rossi com direção de Gianni Ratto, outro italiano que foi abrasileirado. Encenações por assim dizer clássicas, também. De tempos em tempos, é isso, esses clássicos voltam. Um clássico nunca chega, está sempre voltando. Nos revisitando... Outro dia mesmo, ano passado, foi montado na cidade onde moro, em Curitiba pelo Mauro Zanatta e o Roberto Innocente. Então poderíamos arriscar que o clássico se manteria atual por uma sorte de permanência de suas idéias e valores, estabelecendo uma tradição. E por outro lado, que esse mesmo conteúdo repercutiria, tanto aqui quanto lá, em sociedades distintas, atravessando as épocas e países, certamente? E na Itália? Valeria a recíproca? Isto é, os nossos Martins Pena ou Nelson Rodrigues seriam clássicos lá? Eu não vou responder a essas perguntas. Contento-me em colocar a questão. Para tanto recorram, por exemplo, a Ítalo Cavino que escreveu sobre a questão no seu Por que ler os clássicos. Será mais proveitoso do que minhas considerações aqui. O meu problema é outro. É como construir um caminho interessante, um fio condutor para poder comentar sobre o espetáculo de ontem. Jean Duvignaud, estudioso da sociologia do teatro, afirmava que haveria certos textos que não poderiam ser montados porque a sociedade não ofereceria mais os atores a eles adequados. E que os atores seriam incapazes de levar a cena àqueles textos, e apresentar aquelas personagens ao público daquele período. A sociedade teria então que esperar pela preparação desses atores que pudessem dar conta desses textos. Em parte, percebi ontem o problema que Duvignaud havia levantado. Ou seria a minha falta de educação estética que me deixava inquieto diante daquele espetáculo que me pareceu tão lindo, porém tão distante. E aqui não estou a falar do Sr. Brecht, não. Vocês me entenderam. Mas Goldoni é um clássico! E eu como estudante de teatro hoje, no Brasil, tenho o direito e o dever de aperfeiçoar minha formação passando por um texto clássico sim, e por que não Goldoni? O caso é que esse texto, assim como outros clássicos, não foram escrito para nós. Foi escrito faz tempo e para a sociedade onde vivia Goldoni; é ainda composto por 5 atos; foi feito para um teatro que não possuía luz elétrica; e onde o espectador e ator tinham intervalo! Intervalo Senhores! Intervalo pro ator recobrar o fôlego; o espectador retomar a paquera, rever os amigos, reparar no mundo à sua volta; e os empregados do teatro refazer as velas para iluminação dos lustres do palco e da platéia. Intervalo... Coisa que não conhecemos mais. Desapareceu de nossa cultura teatral. Os intervalos, coisa mais fora de moda, dizem que só sobrevivem hoje nas encenações de algumas velhas óperas... ou na televisão, onde o sistema capitalista nos bombardeia com as últimas novidades, de que certamente não preciso, mas provoca o meu desejo compulsivo de consumir! Mas e daí? E a Mirandolina? A dona da estalagem-albergue-hospedaria onde se passa a ação da peça de Goldoni? Bem, a estalagem, albergue, hospedaria está representada por toalhas, panos, colchas e todo tipo de tecido claro de brancura invejável, que nos remete a clássica cenografia de Visconti, se não me engano, para uma outra montagem, essa lá na Itália. Acompanha esse grande varal de pensão, as cortinas que permitem aos atores montar os ambientes onde a ação se desenvolve: quartos e sala do interior da estalagem, etc. e ainda dão um ar de tablado de comédia dell’arte. Tudo muito alvo, que nos remete aos trabalhos manuais, “feito pelas minhas próprias mãos”, o lavar, o passar e o engomar dessa Dona da pensão-hotel do século XVIII, Mirandolina. Essa sagaz comerciante em ascensão que conta com a colaboração de seu fiel Criado, seu futuro marido; um Novo-nobre-rico que comprara sua nobreza e outro Nobre, aristocrata decadente; Saltimbancos, mulheres da vida, artistas de teatro oportunistas na luta pela sobrevivência; e um jovem Cavaliere de espírito avisado contra as dissimulações do mundo feminino, inapto às convenções da mundanidade de seu tempo. A peça de Goldoni quer contar a história dessa mulher muito auto-suficiente, emancipada e esperta para seu tempo? Ou o caso do Cavaleiro inábil com as coisas do mundo que no início da ação despreza as mulheres para no seu desfecho terminar um homem transtornado pelo amor e pela paixão que maliciosamente foi plantado em seu coração? Ele um joguete dela? A matriz da Comedia dell’Arte certamente está lá está, ela subjaz, mas não parece ser mais o cerne no plano da narrativa. Em sua história, Goldoni exibe os segmentos sociais de outrora Aristocracia, Patrão, Comerciante, Criado, Cavaleiro, Artista de teatro, dentro de um diapasão mono-temático, ou de mono-desejo. Cada tipo quer só uma coisa, mas quer muito, isso que deseja, e é esse conflito de quereres elevados que estimula o riso do ridículo. Goldoni coloca em ação temperamentos e comportamentos que ainda hoje sobrevivem. Ele distribui a avareza, hipocrisia, arrogância, ira, luxúria, inveja, humildade, generosidade, temperança e tantos outros vícios e virtudes de seu tempo em seus tipos, visando o espectador, certamente. O objetivo da comédia era chamar atenção do público, que apesar de rir, precisava se corrigir e aperfeiçoar o seu comportamento com o fim de se tornar um cidadão melhor, um homem melhor. Subjaz, portanto um substrato até mesmo político, subversivo que sinaliza a mudança da situação para direção de uma nova ordem. E hoje? Como ficamos? Num mundo globalizado por mercadorias do desejo? Como fazer falar esse texto hoje, inclusive fazendo-o dizer coisas que não tenha podido dizer no tempo de Goldoni, pois Goldoni não conheceu a luz elétrica; o materialismo; o socialismo; as técnicas corporais performáticas; o que dizer então do globo de luz, da discoteca, da música super dançante e impagável dos anos 80 que ele jamais dançara ou se quer imaginara ouvir? Como atualizar sem perder o conteúdo e o valor humano depositado nesses seres ficcionais? A Mirandolina concebida por vocês é pop! É disco! Entretanto, essa leitura pop não toma conta do todo do espetáculo. O princípio da discoteca com suas luzes e sons emerge em momentos pontuais de aberturas/fechamento, apresentações, conclusão, em momentos precisos. Como fazer o pop, o atual, o contemporâneo, o discol contaminar as atuações desses seres ficcionais que já também não são mais as máscaras da comedia dell’arte? Pois foi o próprio Goldoni quem os alforriou do tablado de uma comédia all’improviso para lhes fixar o caráter mais natural e humano das relações e do pacto social. Como fazer o pop, o atual, o contemporâneo, o discol contaminar por dentro o jogo dos atores e a cena, não sendo só o efeito prazeroso do embalo de um sábado à noite? Esse não é um desafio fácil não. Além de contar a história da mulher astuciosa que engendra a transformação desse homem que acaba se humanizando por conta de seu sofrimento graças a mudança que ela faz operar em seu interior; a peça discute a arte de dissimular, a arte de burlar as aparências. Os Aristocratas jogam um jogo de conveniências viciado e decadente desde o interior do próprio jogo; os burladores oficiais, os atores não sabem adequar a dissimulação ao fora do palco; o Cavaliere não é dotado dessa habilidade. E quem não sabe jogar o jogo torna-se a sua vítima. Sim, vítima, ele sabe que precisa evitar certas circunstancias para não se deixar afetar por esses efeitos; somente Mirandolina é consciente bastante de seu talento performativo para ser capaz de manipular gesto e voz no intuito de jogar essa dissimulação. Por isso ela é Mirandolina. O caso é que esse efeito subversivo do riso causado pela dissimulação opera no nível da palavra, e é aí, me parece, que a concepção da montagem em termos disco-dacing tem dificuldade de se ajustar a essas ondas de palavras, que inclusive são reiteradas e repetidas, pois como falei eram 5 atos, e o espectador de Goldoni precisava ser lembrado o tempo todo de tudo que acontecera, precisava dessa constante reiteração, tinha os 4 intervalos, coisa que, creio, nós não precisamos mais hoje. E se não precisamos dos 4 intervalos, será que precisamos de todas as palavras desse texto? E, portanto, apesar do excelente conjunto de atores ter um corpo presencial, que me apresenta o personagem, super bacana, por meio de habilidades corporais, que além de expressivas são invejáveis do ponto de vista do treinamento, suas vozes se conectam timidamente com o universo do jogo das palavras, as nuances dos jogos que são verbais antes de serem corporais, uma fabricação do espírito. Certa vez perguntaram a esse mesmo Procópio o que seria indispensável para um bom ator. E ele disse. – Meu filho um ator precisa de três coisas no teatro: a primeira é Voz, a segunda é Voz e a terceira também é Voz. E talvez por algumas dificuldades técnicas inclusive devotadas ao espaço, ontem nós tenhamos nos distraído na discoteca e esquecido de fazer falar essa voz, que com dificuldade chegava até nós. E por fim, foi se cansando, perdendo o fôlego, meio que se esquecendo de que estávamos lá também para ouvir e não somente ver o que vocês são capazes de fazer com as palavras de Goldoni. Dessa forma fica bem claro pra mim que há um discurso disco-pop super bacana, criado por fora que envolve a encenação, composto por uma escolha musical muito dançante, que se estabelece tangenciando o comportamento da cena. Uma sorte de comentário. Esse comportamento de cena se mantém no plano de uma certa verdade histórica, com os figurinos “de época” que cuidadosamente nos remetem de volta ao tempo da ação no séc. XVIII. Há momentos em que essas linhas se cruzam, mas não o bastante para firmar uma linguagem, ou arriscar numa estranheza que redimensione o discurso do autor.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Festival Internacional de Teatro Universitário - Blumenau

Cien pedacitos de mi arenero, de Laura Fernandez
Cia a 6 grados de distância, IUNA, Buenos Aires, Argentina
Direção de Laura Fernandez e Julieta De Simone
O propósito do comentário e breve análise, como esse retorno que vou tentar fazer aqui e que não sei se serei tão exitoso quanto a encenação do espetáculo de vocês o foi, esse retorno, não visa nada mais do que a possibilidade de prolongar o prazer ou o desprazer do espectador e a possibilidade de estabelecer um novo diálogo entre os criadores e nosostros que desfrutamos da obra apresentada.
Há diversas questões muito atraentes propostas pelo espetáculo. Elejo uma, a morte. E aí vocês se colocam em muito boa companhia. Esse era um assunto que encantava Nelson Rodrigues; ou ainda, apesar do realismo sugerido por vocês é impossível não se recordar de Kantor e seus manequins, seu teatro da morte, e mais uma vez vocês estão em outra excelente companhia. Entretanto, pelo que vi apesar da Morte estar referenciada em cena pelos corpos-cadávereres-embalagens-manequins apesar desse objeto referencial, ela está ao longo do espetáculo sempre no fora de cena pois ela é o objeto sobre o qual se fala. Além de projetada por nossa possível identificação, a morte é lembrança na aliança ensacada, “prova evidente do crime”, que nos coloca como coniventes com o crime.
Parte do grande interesse que o espetáculo desperta advém de um engenhoso achado situacional. O “achado” ao que me refiro é a base realista, ou por que não jornalística, da qual parte a situação onde se passa a ação, que é de grande valor para o que se desenvolve a seguir em cena. A sinopse do texto ilustra um pouco mais o local e as circunstancias da inusitada coincidência do encontro entre esses Marido-Assassinos.
O texto nos diz ainda que os personagens são quatro: O Estrangulador; O Empurrador; O Eletrocutador; e O Envenenador conforme vimos em cena ontem. Até aí, tudo muito claro e coerente inclusive, sugerindo certa sintonia com as últimas sórdidas notícias das nossas páginas policiais, onde em alguns meses a mídia noticiou casos fatais de outros Empurradores... Como se pode ler no texto, a maneira como esses Maridos-Assassinos são descritos, de ante mão, já se pode antever a ação terrível e hedionda que realizaram. Igualmente sobre o palco também podemos deduzir, desde a entrada de cada um deles, pois trazem consigo aquilo que seriam as provas de seus crimes, os corpos mortos, essas embalagens femininas. Desde aí, podemos intuir a horrível tragédia.
Seriam esses corpos-embalagens a marca da presença das sombras do que buscamos negar? E refutar? Esse outro lado obscuro do masculino que tentamos reprimir? Talvez em parte. Quem possui quem? Apesar de estarmos a falar de maridos assassinos que tentam desovar os cadáveres de suas mulheres, após terem arrastados esses corpos a procura do lugar ideal por uma cidade qualquer, não estaria a cena também querendo nos dizer que esse corpo morto esse duplo-feminino-fantasia é quem possuiria seu Assassino? Como carregar fisicamente e manipular esses corpos? Um Assassino trás na memória suas Vítimas, pelo menos um assassino de teatro...
Em que medida, portanto a partir de certo ponto não são essas Vítimas ou seus Fantasmas que possuem e afetam seus Algozes. Como se livrar da coisa quando a coisa está dentro de nós? A princípio, ao ouvir o diálogo que se desenvolve entre os 4 maridos-assassinos poderíamos dizer que se trata de uma visão extremamente machista, ou seria misógina? Qual a fronteira?
O diálogo sobre as reclamações e queixas acerca do cotidiano com suas esposas, que eles desabafam entre si, seria o diálogo que deveriam, por força de uma lógica da ação ou plausibilidade da relação, terem tido com suas mulheres. Só que é complexo, trabalhoso e doloroso construir esta possibilidade de diálogo entre as diferenças daquele feminino morto e desse masculino vivo protagonista vigoroso da ação morticida.
O diálogo em cena é capaz de se estabelece com o Outro que é igual a mim, insatisfeito como eu, incrompeendido como eu, mas não com o Outro que é diferente, diverso de mim. E no crescendo desse diálogo das confissões e acusações particulares quando os 4 se exaltam, brigam e fazem as pazes, extravasam (pelo jogo) de forma infantil-adolescente como numa brincadeira onde depois de subjugar e humilhar um deles, se confraternizam com a farta distribuição de doces beijos de perdão para logo recomeçarem suas provocações.
Que dizer: Estou saturado e como a relação não me agrada mais, me sufoca, mato minha esposa que me repulsa. A esse comportamento violento se opõe a idealização da relação com o outro manifesta no momento em que ao cantarem os 4 assassinos se tornam uma única voz. E a seguir dirigem suas falas aos espectadores. Os espectadores coniventes? E as espectadoras ultrajadas? Quem é a verdadeira "cadela e puta"?
Dessa forma temos uma cena que se organiza segundo uma chave bipolar - Vida / Morte; Macho / Fêmea; Homem Vivo / Mulher Morta; Ideal / Real; Trágico / Cômico; Palco / Platéia – pares de oposições que se constroem num crescendo e que diante da precipitação do fim, mostra que as vozes masculinas se tornam agora uma só, visto que o diálogo anterior que era estabelecido pelos quatro acaba por se revelar, finalmente, como uma instância monológica que procurava mais justificar as causas de seus feitos do que expiar a sua culpa, chorar a ausência ou sofrer pela perda.
Vou destacar 2 momentos que fazem, a meu ver, uma alusão que traduz por oposição os comportamentos feminino e masculino em cena: 1. Quando sobre a cabeça de Luiza um pequeno abajour é acesso; ou 2 quando na seqüência, um prato com frutas (banana e laranja) é colocado sobre o ventre da mulher-assassinada-morta-mesa-objeto-de-decoração-natureza-morta, mas que mesmo assim não deixa de aludir à uma fertilidade, um porvir, uma esperança de futuro que foi interrompida. Da mesma forma a Luiza-abajour com sua cabeça iluminada, ou a mulher-objeto-poltrona-que me abraça não estariam nos dando um sinal de que também uma inteligência e um afeto, uma razão e uma emoção diferente da minha foram assassinada? Parece que o inferno aqui é bem o Outro, só que o Outro diferente.
O discurso de “emancipação” da mulher nos foi dado conhecer na década de 60’. Seria esse espetáculo o princípio de uma voz de um novo-velho discurso masculino sobre a condição do feminino? A novidade é que ele é engendrado pela ótica de sua autora e diretora. Ou seria simplesmente a extirpação de nosso duplo, essa parte doente que todos carregamos com maior ou menor intensidade e por vezes queremos matar? E não conseguimos!