Mirandolina de Carlo Goldoni
Direção de Márcio Tadeu, Cia de Teatro a Blau quer falar, UNICAMP, Campinas.
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Parafraseando Bernard Dort em O Teatro e sua realidade eu também pergunto: Por que montar Goldoni, hoje? A pergunta pode soar estranha, mas a resposta me parece muito lógica. Ora, Goldoni é um clássico. Não é brasileiro, mas é quase. É italiano. E a Itália é logo ali. Sobretudo a Itália da nossa imaginação. É quase como se fosse brasileiro.
Depois tem a tradição. Esse texto já foi montado no Brasil várias vezes. Que eu me lembre de cabeça pelo menos por Bibi Ferreira e seu Pai, o célebre ator Procópio Ferreira lá pelos anos 50 ou 60. E depois foi montado também pela Dona Fernanda com o Teatro dos Sete, Sérgio Brito e Ítalo Rossi com direção de Gianni Ratto, outro italiano que foi abrasileirado. Encenações por assim dizer clássicas, também.
De tempos em tempos, é isso, esses clássicos voltam. Um clássico nunca chega, está sempre voltando. Nos revisitando... Outro dia mesmo, ano passado, foi montado na cidade onde moro, em Curitiba pelo Mauro Zanatta e o Roberto Innocente. Então poderíamos arriscar que o clássico se manteria atual por uma sorte de permanência de suas idéias e valores, estabelecendo uma tradição. E por outro lado, que esse mesmo conteúdo repercutiria, tanto aqui quanto lá, em sociedades distintas, atravessando as épocas e países, certamente? E na Itália? Valeria a recíproca? Isto é, os nossos Martins Pena ou Nelson Rodrigues seriam clássicos lá? Eu não vou responder a essas perguntas. Contento-me em colocar a questão. Para tanto recorram, por exemplo, a Ítalo Cavino que escreveu sobre a questão no seu Por que ler os clássicos. Será mais proveitoso do que minhas considerações aqui.
O meu problema é outro. É como construir um caminho interessante, um fio condutor para poder comentar sobre o espetáculo de ontem.
Jean Duvignaud, estudioso da sociologia do teatro, afirmava que haveria certos textos que não poderiam ser montados porque a sociedade não ofereceria mais os atores a eles adequados. E que os atores seriam incapazes de levar a cena àqueles textos, e apresentar aquelas personagens ao público daquele período. A sociedade teria então que esperar pela preparação desses atores que pudessem dar conta desses textos.
Em parte, percebi ontem o problema que Duvignaud havia levantado. Ou seria a minha falta de educação estética que me deixava inquieto diante daquele espetáculo que me pareceu tão lindo, porém tão distante. E aqui não estou a falar do Sr. Brecht, não. Vocês me entenderam.
Mas Goldoni é um clássico! E eu como estudante de teatro hoje, no Brasil, tenho o direito e o dever de aperfeiçoar minha formação passando por um texto clássico sim, e por que não Goldoni?
O caso é que esse texto, assim como outros clássicos, não foram escrito para nós. Foi escrito faz tempo e para a sociedade onde vivia Goldoni; é ainda composto por 5 atos; foi feito para um teatro que não possuía luz elétrica; e onde o espectador e ator tinham intervalo! Intervalo Senhores! Intervalo pro ator recobrar o fôlego; o espectador retomar a paquera, rever os amigos, reparar no mundo à sua volta; e os empregados do teatro refazer as velas para iluminação dos lustres do palco e da platéia. Intervalo... Coisa que não conhecemos mais. Desapareceu de nossa cultura teatral. Os intervalos, coisa mais fora de moda, dizem que só sobrevivem hoje nas encenações de algumas velhas óperas... ou na televisão, onde o sistema capitalista nos bombardeia com as últimas novidades, de que certamente não preciso, mas provoca o meu desejo compulsivo de consumir!
Mas e daí? E a Mirandolina? A dona da estalagem-albergue-hospedaria onde se passa a ação da peça de Goldoni?
Bem, a estalagem, albergue, hospedaria está representada por toalhas, panos, colchas e todo tipo de tecido claro de brancura invejável, que nos remete a clássica cenografia de Visconti, se não me engano, para uma outra montagem, essa lá na Itália. Acompanha esse grande varal de pensão, as cortinas que permitem aos atores montar os ambientes onde a ação se desenvolve: quartos e sala do interior da estalagem, etc. e ainda dão um ar de tablado de comédia dell’arte.
Tudo muito alvo, que nos remete aos trabalhos manuais, “feito pelas minhas próprias mãos”, o lavar, o passar e o engomar dessa Dona da pensão-hotel do século XVIII, Mirandolina. Essa sagaz comerciante em ascensão que conta com a colaboração de seu fiel Criado, seu futuro marido; um Novo-nobre-rico que comprara sua nobreza e outro Nobre, aristocrata decadente; Saltimbancos, mulheres da vida, artistas de teatro oportunistas na luta pela sobrevivência; e um jovem Cavaliere de espírito avisado contra as dissimulações do mundo feminino, inapto às convenções da mundanidade de seu tempo.
A peça de Goldoni quer contar a história dessa mulher muito auto-suficiente, emancipada e esperta para seu tempo? Ou o caso do Cavaleiro inábil com as coisas do mundo que no início da ação despreza as mulheres para no seu desfecho terminar um homem transtornado pelo amor e pela paixão que maliciosamente foi plantado em seu coração? Ele um joguete dela?
A matriz da Comedia dell’Arte certamente está lá está, ela subjaz, mas não parece ser mais o cerne no plano da narrativa. Em sua história, Goldoni exibe os segmentos sociais de outrora Aristocracia, Patrão, Comerciante, Criado, Cavaleiro, Artista de teatro, dentro de um diapasão mono-temático, ou de mono-desejo. Cada tipo quer só uma coisa, mas quer muito, isso que deseja, e é esse conflito de quereres elevados que estimula o riso do ridículo. Goldoni coloca em ação temperamentos e comportamentos que ainda hoje sobrevivem. Ele distribui a avareza, hipocrisia, arrogância, ira, luxúria, inveja, humildade, generosidade, temperança e tantos outros vícios e virtudes de seu tempo em seus tipos, visando o espectador, certamente. O objetivo da comédia era chamar atenção do público, que apesar de rir, precisava se corrigir e aperfeiçoar o seu comportamento com o fim de se tornar um cidadão melhor, um homem melhor.
Subjaz, portanto um substrato até mesmo político, subversivo que sinaliza a mudança da situação para direção de uma nova ordem.
E hoje? Como ficamos? Num mundo globalizado por mercadorias do desejo? Como fazer falar esse texto hoje, inclusive fazendo-o dizer coisas que não tenha podido dizer no tempo de Goldoni, pois Goldoni não conheceu a luz elétrica; o materialismo; o socialismo; as técnicas corporais performáticas; o que dizer então do globo de luz, da discoteca, da música super dançante e impagável dos anos 80 que ele jamais dançara ou se quer imaginara ouvir?
Como atualizar sem perder o conteúdo e o valor humano depositado nesses seres ficcionais? A Mirandolina concebida por vocês é pop! É disco! Entretanto, essa leitura pop não toma conta do todo do espetáculo. O princípio da discoteca com suas luzes e sons emerge em momentos pontuais de aberturas/fechamento, apresentações, conclusão, em momentos precisos. Como fazer o pop, o atual, o contemporâneo, o discol contaminar as atuações desses seres ficcionais que já também não são mais as máscaras da comedia dell’arte? Pois foi o próprio Goldoni quem os alforriou do tablado de uma comédia all’improviso para lhes fixar o caráter mais natural e humano das relações e do pacto social. Como fazer o pop, o atual, o contemporâneo, o discol contaminar por dentro o jogo dos atores e a cena, não sendo só o efeito prazeroso do embalo de um sábado à noite?
Esse não é um desafio fácil não.
Além de contar a história da mulher astuciosa que engendra a transformação desse homem que acaba se humanizando por conta de seu sofrimento graças a mudança que ela faz operar em seu interior; a peça discute a arte de dissimular, a arte de burlar as aparências.
Os Aristocratas jogam um jogo de conveniências viciado e decadente desde o interior do próprio jogo; os burladores oficiais, os atores não sabem adequar a dissimulação ao fora do palco; o Cavaliere não é dotado dessa habilidade. E quem não sabe jogar o jogo torna-se a sua vítima. Sim, vítima, ele sabe que precisa evitar certas circunstancias para não se deixar afetar por esses efeitos; somente Mirandolina é consciente bastante de seu talento performativo para ser capaz de manipular gesto e voz no intuito de jogar essa dissimulação. Por isso ela é Mirandolina.
O caso é que esse efeito subversivo do riso causado pela dissimulação opera no nível da palavra, e é aí, me parece, que a concepção da montagem em termos disco-dacing tem dificuldade de se ajustar a essas ondas de palavras, que inclusive são reiteradas e repetidas, pois como falei eram 5 atos, e o espectador de Goldoni precisava ser lembrado o tempo todo de tudo que acontecera, precisava dessa constante reiteração, tinha os 4 intervalos, coisa que, creio, nós não precisamos mais hoje. E se não precisamos dos 4 intervalos, será que precisamos de todas as palavras desse texto?
E, portanto, apesar do excelente conjunto de atores ter um corpo presencial, que me apresenta o personagem, super bacana, por meio de habilidades corporais, que além de expressivas são invejáveis do ponto de vista do treinamento, suas vozes se conectam timidamente com o universo do jogo das palavras, as nuances dos jogos que são verbais antes de serem corporais, uma fabricação do espírito.
Certa vez perguntaram a esse mesmo Procópio o que seria indispensável para um bom ator. E ele disse. – Meu filho um ator precisa de três coisas no teatro: a primeira é Voz, a segunda é Voz e a terceira também é Voz.
E talvez por algumas dificuldades técnicas inclusive devotadas ao espaço, ontem nós tenhamos nos distraído na discoteca e esquecido de fazer falar essa voz, que com dificuldade chegava até nós. E por fim, foi se cansando, perdendo o fôlego, meio que se esquecendo de que estávamos lá também para ouvir e não somente ver o que vocês são capazes de fazer com as palavras de Goldoni.
Dessa forma fica bem claro pra mim que há um discurso disco-pop super bacana, criado por fora que envolve a encenação, composto por uma escolha musical muito dançante, que se estabelece tangenciando o comportamento da cena. Uma sorte de comentário. Esse comportamento de cena se mantém no plano de uma certa verdade histórica, com os figurinos “de época” que cuidadosamente nos remetem de volta ao tempo da ação no séc. XVIII. Há momentos em que essas linhas se cruzam, mas não o bastante para firmar uma linguagem, ou arriscar numa estranheza que redimensione o discurso do autor.