Cien pedacitos de mi arenero, de Laura Fernandez
Cia a 6 grados de distância, IUNA, Buenos Aires, Argentina
Direção de Laura Fernandez e Julieta De Simone
O propósito do comentário e breve análise, como esse retorno que vou tentar fazer aqui e que não sei se serei tão exitoso quanto a encenação do espetáculo de vocês o foi, esse retorno, não visa nada mais do que a possibilidade de prolongar o prazer ou o desprazer do espectador e a possibilidade de estabelecer um novo diálogo entre os criadores e nosostros que desfrutamos da obra apresentada.
Há diversas questões muito atraentes propostas pelo espetáculo. Elejo uma, a morte. E aí vocês se colocam em muito boa companhia. Esse era um assunto que encantava Nelson Rodrigues; ou ainda, apesar do realismo sugerido por vocês é impossível não se recordar de Kantor e seus manequins, seu teatro da morte, e mais uma vez vocês estão em outra excelente companhia.
Entretanto, pelo que vi apesar da Morte estar referenciada em cena pelos corpos-cadávereres-embalagens-manequins apesar desse objeto referencial, ela está ao longo do espetáculo sempre no fora de cena pois ela é o objeto sobre o qual se fala. Além de projetada por nossa possível identificação, a morte é lembrança na aliança ensacada, “prova evidente do crime”, que nos coloca como coniventes com o crime.
Parte do grande interesse que o espetáculo desperta advém de um engenhoso achado situacional. O “achado” ao que me refiro é a base realista, ou por que não jornalística, da qual parte a situação onde se passa a ação, que é de grande valor para o que se desenvolve a seguir em cena. A sinopse do texto ilustra um pouco mais o local e as circunstancias da inusitada coincidência do encontro entre esses Marido-Assassinos.
O texto nos diz ainda que os personagens são quatro: O Estrangulador; O Empurrador; O Eletrocutador; e O Envenenador conforme vimos em cena ontem. Até aí, tudo muito claro e coerente inclusive, sugerindo certa sintonia com as últimas sórdidas notícias das nossas páginas policiais, onde em alguns meses a mídia noticiou casos fatais de outros Empurradores...
Como se pode ler no texto, a maneira como esses Maridos-Assassinos são descritos, de ante mão, já se pode antever a ação terrível e hedionda que realizaram. Igualmente sobre o palco também podemos deduzir, desde a entrada de cada um deles, pois trazem consigo aquilo que seriam as provas de seus crimes, os corpos mortos, essas embalagens femininas. Desde aí, podemos intuir a horrível tragédia.
Seriam esses corpos-embalagens a marca da presença das sombras do que buscamos negar? E refutar? Esse outro lado obscuro do masculino que tentamos reprimir? Talvez em parte. Quem possui quem? Apesar de estarmos a falar de maridos assassinos que tentam desovar os cadáveres de suas mulheres, após terem arrastados esses corpos a procura do lugar ideal por uma cidade qualquer, não estaria a cena também querendo nos dizer que esse corpo morto esse duplo-feminino-fantasia é quem possuiria seu Assassino? Como carregar fisicamente e manipular esses corpos? Um Assassino trás na memória suas Vítimas, pelo menos um assassino de teatro...
Em que medida, portanto a partir de certo ponto não são essas Vítimas ou seus Fantasmas que possuem e afetam seus Algozes. Como se livrar da coisa quando a coisa está dentro de nós?
A princípio, ao ouvir o diálogo que se desenvolve entre os 4 maridos-assassinos poderíamos dizer que se trata de uma visão extremamente machista, ou seria misógina? Qual a fronteira?
O diálogo sobre as reclamações e queixas acerca do cotidiano com suas esposas, que eles desabafam entre si, seria o diálogo que deveriam, por força de uma lógica da ação ou plausibilidade da relação, terem tido com suas mulheres. Só que é complexo, trabalhoso e doloroso construir esta possibilidade de diálogo entre as diferenças daquele feminino morto e desse masculino vivo protagonista vigoroso da ação morticida.
O diálogo em cena é capaz de se estabelece com o Outro que é igual a mim, insatisfeito como eu, incrompeendido como eu, mas não com o Outro que é diferente, diverso de mim. E no crescendo desse diálogo das confissões e acusações particulares quando os 4 se exaltam, brigam e fazem as pazes, extravasam (pelo jogo) de forma infantil-adolescente como numa brincadeira onde depois de subjugar e humilhar um deles, se confraternizam com a farta distribuição de doces beijos de perdão para logo recomeçarem suas provocações.
Que dizer: Estou saturado e como a relação não me agrada mais, me sufoca, mato minha esposa que me repulsa. A esse comportamento violento se opõe a idealização da relação com o outro manifesta no momento em que ao cantarem os 4 assassinos se tornam uma única voz.
E a seguir dirigem suas falas aos espectadores. Os espectadores coniventes? E as espectadoras ultrajadas? Quem é a verdadeira "cadela e puta"?
Dessa forma temos uma cena que se organiza segundo uma chave bipolar - Vida / Morte; Macho / Fêmea; Homem Vivo / Mulher Morta; Ideal / Real; Trágico / Cômico; Palco / Platéia – pares de oposições que se constroem num crescendo e que diante da precipitação do fim, mostra que as vozes masculinas se tornam agora uma só, visto que o diálogo anterior que era estabelecido pelos quatro acaba por se revelar, finalmente, como uma instância monológica que procurava mais justificar as causas de seus feitos do que expiar a sua culpa, chorar a ausência ou sofrer pela perda.
Vou destacar 2 momentos que fazem, a meu ver, uma alusão que traduz por oposição os comportamentos feminino e masculino em cena: 1. Quando sobre a cabeça de Luiza um pequeno abajour é acesso; ou 2 quando na seqüência, um prato com frutas (banana e laranja) é colocado sobre o ventre da mulher-assassinada-morta-mesa-objeto-de-decoração-natureza-morta, mas que mesmo assim não deixa de aludir à uma fertilidade, um porvir, uma esperança de futuro que foi interrompida. Da mesma forma a Luiza-abajour com sua cabeça iluminada, ou a mulher-objeto-poltrona-que me abraça não estariam nos dando um sinal de que também uma inteligência e um afeto, uma razão e uma emoção diferente da minha foram assassinada? Parece que o inferno aqui é bem o Outro, só que o Outro diferente.
O discurso de “emancipação” da mulher nos foi dado conhecer na década de 60’. Seria esse espetáculo o princípio de uma voz de um novo-velho discurso masculino sobre a condição do feminino? A novidade é que ele é engendrado pela ótica de sua autora e diretora. Ou seria simplesmente a extirpação de nosso duplo, essa parte doente que todos carregamos com maior ou menor intensidade e por vezes queremos matar? E não conseguimos!