Sapato sujo na soleira da Porta.
Orientação, Grácia Navarro. Grupo do Trecho, UNICAMP, SP.
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Fomos convidados a tomar um ônibus e seguir para o local escolhido pelo Grupo do Trecho. – “Para uma visita ao Albergue da cidade”, informou a voz que organizava a excursão. Quanto mais nos distanciávamos do centro da cidade, deixando pra trás a cenografia fake do cenário da colonização alemã, mais adentrávamos na Blumenau profunda, em um dos seus interiores que até então a festa do festival e o movimento da rua XV nos impediam até de imaginar que isso existiria por aqui.
Saímos do centro e fomos para periferia, fora do centro.
Pouquinho antes de chegar uma atriz representando um Repórter se junta ao grupo e procura “adensar”, nosso olhar e nossa percepção sobre nosso destino, com seus comentários e perguntas. Não precisava exagerar na visita guiada, o grupo já ia tirando suas conclusões e meditando sobre a excêntrica viagem. Sua tentativa de travar uma conversa com os passageiros-espectadores da excursão parecia querer esquentar, preparar-nos para visita guiada até o local da situação, uma espécie de prólogo cifrado.
Eu aproveitava para meditar sobre o fato de que, de maneira geral, é no percurso que nos transformamos efetivamente em espectador, que nos colocamos em estado de alerta e interesse diante do fato teatral. Isso para qualquer espetáculo.
Chegamos.
Ao adentrarmos nos limites do Albergue nos deparamos com outro personagem, aquele do “Eu sou um engodo!”, de chapeuzinho Árabe. A visita guiada não é tão guiada assim, pois se trata de uma reportagem que está acontecendo, onde a Repórter além de tirar fotos parece irradiar ou gravar os acontecimentos com um outro aparelho meio rádio, meio gravador, pouco importa, isso não faz a menor diferença.
A repórter parece conhecer tudo que de antemão pergunta. Não há surpresas. Ela transita pelo espaço como se o conhecesse. Ela não o descobre. Seria ela uma albergada que fingiria ser um repórter para dar algum sentido a essas vidas reclusas?
A minha primeira impressão como espectador-visitante ao local é de total violência! É ultrajante! É um abuso desnecessário explorar esse ambiente de onde se depreende uma sórdida precariedade local.
Qual o limite entre a ficção e o real? O real é a realidade daquele ambiente, carregado de um odor característico; úmido molhado; o provisório das instalações, e tudo que todo mundo viu e pode imaginar. Não vou me alongar. De onde estava via os beliches escuros e as cobertas, imaginava o estado daquelas instalações pelo interior; o frio opressor; a chuva; a lama; o sapato sujo na soleira da porta; algumas figuras deitadas em suas camas olhando fixamente o nada; pouca gente de lá assistindo a peça.
Comparava aquelas instalações e ambiente do Albergue, com a da Colônia de Paracambi, no Rio de Janeiro, que visitei há tempos atrás.
Enquanto eu trocava umas rápidas palavras com o Sr. e a Sra. que me explicavam sobre os tapetes e as sacolas que eles produzem e que são vendidos na PROEB, a representação da reportagem prosseguia e cada vez mais nosso falso guia, a Repórter adentrava-nos no coração do seu fato jornalístico; ou seria uma pesquisa antropológica? Ou um programa daquele tipo Mundo cão! Não...
A reportagem avançava. E das entrevistas a Repórter arrancava dramas que se sucediam, foi-nos contadas as histórias da Loura, da Noiva, do Mergulhador, com direito à participação especial de algumas albergadas, uma como Cigana, a outra como Dama de Honra da Noiva e a Mulher do Bar...
Nosso turismo exótico continuava...
Por conta da situação ficcional ouvíamos sempre relatos do Eu. Depoimentos. Isto é uma espécie de Dramaturgia do Eu-Biografado que era reiterada por cada ator ao representar seu Tipo-Afligido pelo flagelo da desesperança e do esquecimento.
Todos, não só os seres ficcionais e os albergados, todos ao perdermos algo, passamos a construir a espera por outro algo. Em alguma medida essa construção simbólica se instaura. Parece ser essa também a crise das figuras ali representadas, incluindo a Repórter. O Relato da perda e da tentativa de reparação que nunca chega. A projeção para o futuro por conta do Encontro redentor!
O caso é que meu espírito mantinha-se dividido. Pra mim isso que acabo de descrever não era o mais importante. Era assistido de rabo de olho. Apesar de reconhecer que todos os integrantes do grupo são muito bons atores dando claras demonstrações de suas habilidades e competências performativas. A realidade chamava meus olhos com a urgência que só a vida pode ter. E eu pensava...
Mas, por que trazer essas histórias para esse ambiente? Não havia albergados lá ontem? Se eu fosse Albergado, deprimido e estivesse no estado daqueles senhores lá, isto é, no limbo existencial, “mas é nunca que eu queria ver a história da minha vida sendo contada, repetda assim na minha cara e diante de todo mundo...” Meio sociodrama ou psicodrama... Vou explicar para o Sem Terra, o que é não ter a terra? Ele sabe melhor do que eu. Talvez, sim, possamos fazer alguma coisa juntos e permitir que ele me descubra integralmente e me reconheça como um outro. Coisa difícil para quem perdeu sua estima.
Eu deduzia... Mas o Grupo deve ter feito uma pesquisa de campo, um exercício antropológico para descobrir essas histórias todas que está nos contando, mas por que contá-las nesse lugar? Ele é imprescindível? Que diferença faz contar aqui ou na rua? Ou numa praça ou parque? Claro, entendi que não se trataria aí de teatro de rua, mas sim de teatro na rua...
Saímos do centro e fomos para periferia. E na periferia permanecemos.
Pois nossa visita turística também foi periférica. Só circulávamos no perímetro do albergue sem adentrar em seu centro. Talvez tenha sido uma imposição do pessoal da Sala dos Educadores do Abrigo? Pouco importa... Só corremos o perímetro do perfil daquelas criaturas, jamais seus corações...
O Grupo escolheu os lugares mais adequados para “representar” suas histórias, esses documentos de vida e morte, mas sempre contornando o problema, assim como contornava a própria dramaturgia do espetáculo que dava voz ao excluído.
No plano ficcional, pareceu-me que a representação da reportagem terminara quando a Repórter fora tragada pelas demais figuras por conta de um saturamento provocado por sua intromissão num “universo” que acabava por subtrair a sua voz de matraca.
Fim!
Aplaudo? Vou aplaudir o que? A miséria humana? A solidão do Sem domicílio Fixo? A atuação dos artistas que é capaz de imitar com sucesso um ente desesperado, sem abrigo e meio biruta?
Eu já sou tímido. Fiquei mais intimidado ainda diante da possibilidade de manifestar fisicamente o que quer que fosse ali, diante daquelas pessoas, diante do que aquela instituição significa. E depois tem o apito! Aquela autoridade meio rerpressora...
Impasse.
Apesar da construção de um realismo fantástico ou meio mágico por conta das atuações, como bem me comentou o prof, Stephan em nosso bate papo depois, constatei pra mim a total inadequação daquele lugar para realização de vocês, e constrangimento que parece era maior para nós na condição de espectador-turista. Para os Albergados ficou, suponho, com licença da presunção, suponho que tenha ficado somente, a indiferença, graças ao artificialismo da situação.
Nos perguntávamos já na volta, com o Renato, Natasha e uma Senhora que era público de verdade: Os Albergados elegeram vocês para contar as histórias de vida deles? O que legitima a posição do grupo diante de tamanha intromissão num ambiente que não acrescenta, absolutamente, nada à história que o grupo quer nos contar? E aí? Você chega, pede licença monta sua peça. Eles ajudam um pouquinho. Vamos embora e fica tudo como estava antes. Se o teatro é uma arte tão subversiva e transformadora, em que medida vosso grupo anda operando essa transformação pelos Albergues que vem passando. Bacana! Teatro como ação social e movimento de reintegração na vida tributária daqueles que ainda não se adaptaram bem a ela. Bacana...
Seus Biografados, aqueles da pesquisa de campo. O que receberam de vocês? Ou, o que mudou na situação deles depois que vocês apresentaram as suas histórias ficcionais baseadas nessas histórias reais?
Num dos filmes que o prof. Faleiro selecionou para mostra de Vídeo, a um em especial que se destaca e pode ajudar-nos aqui na nossa meditação sobre o caso específico de ontem, Um Soleil à Kaboul. Nesse documentário onde Arianne Mnouchkine e sua trupe se deslocam até o Afeganistão ela oferece aos teatristas locais o que ela sabe fazer de melhor, é claro, o seu teatro, oficinas. E em meio à delicada experiência de trocas simbólicas interculturais, com o risco da guerra, ela diz a um grupo de atores afegãos que eles têm uma missão. A missão deles, segundo ela, é trabalhar na reversão do uso da burka que o costume cultural local impinge a Mulher. Sabe lá o que é ter que ver o mundo por uma janela que ao mesmo tempo me esconde de tudo... O que me interessa aqui é pensar essa atribuição de uma missão? Quem delegou essa missão a vocês necessita trabalhar para ajustar o curso das relações, para pensar estratégias e procedimentos que ultrapassem o próprio teatro, se for o caso, naturalmente.
O problema que o trabalho de vocês nos coloca é o problema da ética, como todos estamos a comentar. Da ética profissional. Quais são os limites das relações estabelecidas entre entrevistador e entrevistado? Eu tenho a autorização desses seres estudados para por sua as suas trajetórias em cena? Apesar de recriadas poeticamente? A pesquisa de vocês envolve seres humanos, apesar de serem aqueles que estão em estado de risco, de abandono, e sem domicílio fixo, quase ninguém.
Os procedimentos dispensados por vocês na apresentação são de natureza absolutamente invasiva e intimidante. Pode ser que vocês se sintam protegidos por se “transformarem” em mais um deles, albergados, e todo esse desconforto seja só meu de espectador inadvertido.
Acho que têm razão Joazinho Trinta que disse: “O povo gosta de luxo. Quem gosta de pobreza é intelectual”.